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Lugares de memória
| Foto: Pixabay

Certos espaços podem ser considerados verdadeiros “lugares de memória”, e quando estes assumem significado para muitos, constituem uma tradição coletiva, que mantem a coesão da comunidade; da mesma forma alguns acontecimentos são extremamente marcantes para uma coletividade, e muitas vezes determinam características que farão parte da estrutura psíquica dos habitantes de algumas regiões, como grandes guerras ou catástrofes podem marcar profundamente a forma de ver ou reagir aos fatos futuros.

Tal coesão de certas populações é efetivada pelo passado comum, que determina seu presente ao juntar fragmentos que sistematizam uma narrativa, instalam ocorrências grupais, estabelecem seus pais fundadores, seus heróis e vilões, transformam espaços em lugares com significados, revelam suas utopias. O passado comum faz com que cada geração se ligue a outras, e o que denominamos cultura são as muitas imagens preservadas na memória, não apenas congeladas, mas como narrativas vivas de todo o caminho percorrido. Esse passado tem componentes diferenciadores, a identidade, que faz japoneses não terem, geralmente, os mesmos comportamentos que alemães, brasileiros ou suíços, pelos seus distintos percursos. Mas tem também um longo caminho comum, de humanidade compartilhada, que é nossa base fundante.

Em função deste anteriormente vivido tem sido surpreendente assistir filmes onde, na Idade Média, a heroína é culta, independente, tem amigos de todas as colorações de pele, com os quais conversa de igual para igual, é altiva com seu namorado e não parece fazer a mínima questão de casar-se com ele. Além de lutar kung fu, claro.

A pergunta é, com toda esta construção de uma nova trajetória, do que se queixariam as mulheres hoje? Já instruídas desde a Idade das Trevas, já ocupando seus “lugares de fala”, inclusivas e articuladas, certamente não precisariam preocupar-se em participar do mercado de trabalho, obter isonomia de tratamento e salários equiparados, como tenta o bom processo educativo.

A filosofia politicamente correta de preservar a autoestima toma um desvio errado ao falsear a realidade, ao contar uma historinha cor-de-rosa sobre a vida das mulheres ao longo de todo nosso processo civilizacional. Fazer uma menina gostar de seu cabelo e formato de corpo, respeitar sua história, valorizar sua família, certamente passa por uma compreensão profunda de quem é e de onde veio, mas não pela criação bem-intencionada de um falso passado.

Da mesma forma, é preciso encarar que fomos maus, perversos, desequilibrados com estrangeiros de várias colorações, principalmente negros de algumas centenas de anos para cá, que escravizamos, torturamos, dizimamos índios, extinguimos animais e meio ambiente, e que estamos, a duras penas, tentando ultrapassar este tipo de péssimo comportamento. Não é fácil, estão aí os racistas, autoritários, machistas, devastadores da natureza e preconceituosos que são eleitos em vários países do mundo para provar.

Mas certamente não será negando ter feito tudo isso, criando uma narrativa de anjos, tapando com pá de cal nossos malfeitos que amadureceremos como seres humanos. Odiar certos livros que foram escritos, às vezes com genialidade, mas refletindo exatamente a época e seus costumes em que a história é contada, renegar estátuas que erigimos em homenagens a perversos – no lugar de contextualizar e tentar trazer à luz da compreensão o realmente havido vai, mais uma vez, fazer com que imponhamos uma certa visão de mundo que pode até prevalecer por um tempo, mas que não integra os que não compartilhavam a mesma opinião.

Este tem sido um problema recorrente: a história contada pelo vencedor, que pretende anular a voz do perdedor. Posições como casamento homossexual, sistemas de cotas, isonomia salarial tem sido discutidas por certa parcela da população e estabelecidas como se representassem consensos absolutos. Infelizmente não são, e pouco tem sido feito para agregar os discordantes, o que apenas seria possível com um melhor sistema educacional.

Muitas vezes o perdedor apenas esconde seu rancor, seus ressentimentos, e, na primeira chance, ganha a eleição com candidatos que correspondem ao seu desejo de vingança contra aqueles que não o esclareceram, não o convenceram, não o trouxeram ao processo cognitivo que permitisse entendimento.

Wanda Camargo é educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil (UniBrasil).

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