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É quase palpável, pelo menos nas grandes cidades do Brasil, um sentimento difuso de desânimo e abatimento, perceptível mesmo nas conversas informais. Quase se pode tocar a desesperança, o pessimismo, a desconfiança de dias melhores. De fato, por onde o olhar se volta multiplicam-se os casos de violência, aviltamento da dignidade humana, homicídios aos montes, corrupção como nunca se viu. Policiais são mortos em serviço, cidadãos arrastados até a morte pelas ruas, menores planejam e executam crimes às vésperas da maioridade penal. É então que se percebe um sentimento comum e anônimo em favor do recrudescimento das penas criminais. Diante de tanto sofrimento, exige-se que os culpados sejam punidos. Contudo, será mesmo que bastariam mais e maiores censuras legais para tornar uma cidade mais civilizada? De outro modo, o aumento da penalidade legal para os crimes é capaz de tornar homens desonestos pessoas melhores? Um olhar sobre a literatura universal pode ajudar.

O tema é célebre: se o homem tivesse certeza de que a lei não o alcançaria, ele agiria em conformidade com as normas humanas de convivência? Um dos registros mais antigos dessa pergunta está consignado por Platão. O mito do anel de Giges trata justamente da questão de saber como um homem comum agiria se pudesse fugir das implicações penais sobre suas ações. O anel mitológico de Platão nunca existiu, mas as gerações humanas, uma após a outra, dedicam-se a comprovar que as sanções legais não impedem que outros artefatos, com poderes igualmente especiais, acabem transformando um cidadão comum em um intocável perante as leis, impossibilitando que seja levado aos tribunais. E, assim, sem anel, mas com uma simples ligação à pessoa certa, isenta-se um filho do serviço militar obrigatório, livra-se a esposa de uma multa de trânsito, impede-se uma visita indesejada do órgão fiscalizador a um centro de ensino. Enfim, as limitações legais nunca foram suficientes para tornar o homem melhor, pois ele sempre pôde criar – e efetivamente criou – modos de tornar-se invisível aos balizamentos jurídicos, se não com um anel mágico, recentemente com as virtudes mágicas de um telefone móvel.

Platão conclui que o homem justo é o que possui parâmetros internos para suas ações e não apenas os externos, já que sempre se pode escapar da servidão legal. Não são forças externas, impedidoras das ações, que tornam os homens melhores, mas aquela força interna que resiste ao egoísmo, à injustiça, à violência. Fique claro que isso não significa, absolutamente, que se deva descuidar dessa ferramenta necessária para o convívio humano. Sempre se necessitará dos expedientes externos, sejam tribunais, escolas ou farmácias, pois homens livres podem simplesmente negar-se a limitações internas. Entretanto, uma cidade melhor tem suas raízes bem apoiadas nas práticas justas de seus cidadãos. Homens melhores, não leis, é do que se precisa para uma cidade mais honesta e segura. Parafraseando o filósofo Platão, precisa-se de mais virtudes, menos Prozac.

Robson Oliveira, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é professor da PUC-RJ e da Anhanguera-Niterói.

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