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A chacina do Realengo exige menos demagogia e mais eficácia. Exige, sobretudo, uma atitude mais humanitária para desativar o nível de violência

O senador José Sarney exibiu a sua obsolescência ao propor, logo após a matança em Realengo, a realização de um plebiscito para aprovar a proibição do comércio de armas de fogo. Demagogia barata, oportunismo governista, comodismo típico do parlamentar mais interessado em produzir novas leis do que em fiscalizar o cumprimento das antigas.

Sarney detesta Hugo Chávez – é um dos seus raros atributos – mas acabou adotando-o como modelo ao propor nova consulta popular sobre um tema que já fora levado ao escrutínio da sociedade, com resultados lamentáveis. Queria "passar a limpo" o referendo de 2005 (que lamentavelmente não aprovou a interdição do comércio de armas de fogo) sem perceber que uma rigorosa fiscalização sobre o Estatuto do Desarmamento (aprovado em seguida) evitaria ou reduziria drasticamente os 50 mil fuzilamentos/ano que enlutam nossa sociedade.

A chacina do Realengo exige menos demagogia e mais eficácia. Exige, sobretudo, uma atitude mais humanitária para desativar o nível de violência. Impedido de comprar os dois revólveres, recarregadores e a farta munição que utilizou, Wellington de Oliveira poderia cometer crimes ainda mais bárbaros. Sofria de distúrbios mentais, seu comportamento antissocial já chamara a atenção de familiares e professores, tanto que iniciara um tratamento, logo descontinuado. Esse é o ponto que escapa a legisladores robotizados como Sarney.

Sem a ajuda terapêutica, aquele estranho adolescente tornou-se um doente mental. Tratado, facilmente perderia os medos e se integraria à sociedade. Maltratado, converteu-se em um marginal. Não era um idiota, ao contrário: articulado, escrevia razoavelmente (melhor até que muitos acadêmicos), seu interesse por questões subjetivas e espirituais, devidamente amparado, poderia levá-lo para caminhos opostos. Estava desempregado por opção e em função da própria patologia, não sabia integrar-se, conviver.

O autorretrato em vídeo exibido pela televisão nesta quarta-feira nos oferece a aberrante imagem de um monstro moral. O doente abandonado e jamais medicado estava em estado terminal: aquela falsa mansidão era o sintoma mais evidente de uma brutal desorganização psíquica. Aparentava tranquilidade, estava tomado pelo pânico. Só o dedo no gatilho poderia acalmá-lo.

A fantasia de vítima foi o recurso encontrado para legitimar o ódio contra si mesmo. Por isso inventou uma "causa" para morrer. Por isso apresentou-se para si e para o mundo como um heroico guerrilheiro que se infiltra no território inimigo e procura interagir com o adversário (esse é o vocabulário da demência e não de um suposto fanatismo religioso).

O bullying que teria sofrido na escola é invenção posterior, recente, estratagema oportunista, construção da própria enfermidade. Como o hipocondríaco que inventa doenças, nosso serial-killer inventou uma nova moléstia. Para vingar-se das gozações das meninas bastaria ser feliz. Não tentou, não conseguiria.

Alma em frangalhos, fragmentada pela fragmentação da internet, um ser digitalizado, recortado e colado com as migalhas do mundo "pontocom". Com as duas mães sequer teve oportunidade de conceber o chamado "romance familiar" que, geralmente, costura e estrutura uma família.

Wellington Oliveira não é filho da miséria ou da fome, é filho de uma sociedade que não sabe lidar com a doença, não sabe diagnosticá-la, tratá-la e, muito menos, curá-la. Qualquer um pode contaminar-se com a aids, basta descuidar-se. O psicopata não mora ao lado (título de um best-seller), a psicopatia está em cada ser humano, facilmente acionável em situações-limite, estresse, ameaças. E solidão.

O Estatuto do Desarmamento está aí para ser aperfeiçoado e rigorosamente cumprido. É um instrumento fundamental para a nação perder o medo e, em seguida, isolar a paranoia.

Alberto Dines é jornalista.

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