| Foto: Nosnibor137/Bigstock

Eu era uma atleta jovem e determinada; ele, carismático, era um verdadeiro pilar da comunidade – mas, depois de todos esses anos, aos 68, por mais feliz e bem resolvida que seja, sou eu que continuo a lidar com a raiva e a vergonha de ter sido silenciada.

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Meu caso é igual a inúmeros outros. Eu tinha 14 anos. Ingênua, em 1964. Acho que nem saberia explicar o que era uma relação sexual.

Meu técnico de natação era, sob vários aspectos, o pai que sempre quis ter. Eu o conheci quando tinha 10, e aqueles quatro primeiros anos foram marcados por uma forte relação mentor-aluna. Ele vivia repetindo que eu tinha todos os talentos para um dia surpreender o mundo. Eu o idolatrava. A palavra dele era A Lei. Eu o pusera em um pedestal e o considerava o centro do meu universo.

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No verão daquele ano, nosso colégio organizou o campeonato estadual. Era um evento superimportante e eu era a estrela. Entre as preliminares vespertinas e as finais noturnas, cheia de confiança, fui para a casa do Treinador para tirar um cochilo. Era a coisa mais normal, já que a família dele, principalmente os filhos, fazia parte da equipe também, e do dia a dia das disputas.

Eu dormia profundamente na suíte principal quando aconteceu. De repente, do nada, ele estava em cima de mim. Abaixou meu maiô, agarrou e babou nos meus seios. Estava ofegante e gemia. Acho que prendi a respiração bem uns dois minutos inteiros, o corpo travado em uma posição impenetrável. Os braços tremiam, presos ao lado do corpo. Ele me pedia para abrir as pernas, mas eu as mantinha juntas, com força. Se é a respiração que nos dá força, naquele dia eu senti a energia do meu corpo fazendo exatamente o contrário, ou seja, não respirando. Ele ejaculou na minha barriga, o tronco atlético de que eu tinha tanto orgulho de repente violado por aquela coisa estranha e nojenta.

Quando ele saiu do quarto, comecei a arfar, como se tivesse sido forçada a ficar debaixo d’água aqueles dois minutos. Vomitei ali no chão.

Precisamos preparar as gerações futuras para falar no momento em que os abusos acontecem

Naquela noite, eu parecia não fazer parte deste mundo. Os colegas tiveram de me chamar para a piscina. Não ouvi a voz do anunciante. No fim, ganhamos o título por equipe, mas, enquanto o pessoal ria e comemorava, continuei na piscina e desci para o fundo. Meu mundo, ainda tão novo, tinha virado de cabeça para baixo, e eu me senti muito só em minha confusão e medo. Gritei nas profundezas da água escura: “Isso não vai arruinar a minha vida!”

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Posso ter desafiado a ruína, mas minha vida mudou dramaticamente naquele dia. Aquele primeiro episódio, cruel, marcou o início de anos de abuso dissimulado. Dali até eu me formar, virei uma solitária, isolada, em um papel que não me é natural. Perdi o título extraoficial de “a mais disciplinada” da equipe, a primeira a começar a treinar de manhã cedinho – afinal, não podia me arriscar a ficar sozinha com o Treinador de novo. Assistia às aulas, distraída pela imagem de ter meus seios arrancados com navalha. Do dia para a noite, comecei a viver como um soldado solitário. Não precisava de ninguém para nada.

O cenário da minha história é antigo; instrutores, padres, médicos, líderes escoteiros, padrastos e, sim, claro, produtores de cinema continuam atacando aqueles que supostamente deveriam orientar há tempos. E esta não é a primeira vez que conto minha história. Denunciei pela primeira vez os detalhes dos anos de humilhação aos 21 – e a sensação de poder que a confissão me deu foi imediata.

Para mim, ter de ficar calada era tão horrível quanto sofrer assédio. Entrar na Justiça provou, vezes sem conta, ser recurso inútil, mas eu poderia pelo menos recuperar a minha dignidade a cada vez que dissesse a verdade. Há quase cinco décadas venho contando o que houve, em alto e bom som. É importante, inclusive para a minha saúde. E dá coragem, estimulando muitas outras a contarem suas histórias. Continuarei a oferecer meu relato até que todas as mulheres e meninas descubram suas próprias vozes.

Eu não sofri o Holocausto. Nunca experimentei os horrores da guerra. Não considero minha juventude trágica, embora tenha passado todos os dias dos anos do ensino médio apavorada, sem saber se ele me chamaria depois do treino para um passeio humilhante em seu carro ou para passar uma hora desagradável no motel do fim da rua. Não estava estudando com meus amigos; não estava com minha família; estava com os dentes cerrados, tendo de fazer força para manter as pernas juntas, esperando para poder respirar de novo. E ficava calada. Sempre calada. Ele me dizia que compartilhávamos algo muito especial, que a minha vida viraria de cabeça para baixo se alguém soubesse, que aquilo era mágico. Era o nosso segredinho especial.

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Um belo dia, a elite do nosso colégio tinha acabado de fazer um treino leve, pois no dia seguinte iria para Oklahoma brigar pelo campeonato nacional. Cada um de nós teria de conversar com o Treinador em particular, em sua sala, para falar das estratégias das disputas.

Aguardava a minha vez sem medo de ser assediada, pois estávamos na escola. Os outros atletas estavam batendo papo pertinho da porta.

Assim que comecei a falar da preocupação com a minha forma, ele voou da cadeira e se postou atrás de mim. Abriu minha roupa e apalpou meus seios. Ligeiro, me arrastou para o pequeno banheiro ao lado de sua sala e me empurrou para o colchão de solteiro que ficava no box. Meu corpo reagiu da forma já conhecida, ou seja, eu me enrijeci inteira. Ele implorou para eu me abrir, mas meu sistema de sobrevivência estava tomado pelo terror. Os olhos vidrados de prazer, ele me chamava de sua “vadiazinha”. Até hoje eu me encolho ao ouvir essa palavra. Tremendo, resfolegando e babando, mais uma vez ejaculou na minha barriga. Minha respiração estava curta, na garganta, quando ele voltou para o escritório e chamou o próximo nadador. Lívida, cruzei com o garoto que entrava e saí andando a esmo. O ódio que sentia de mim mesma e a vergonha crescendo no peito me consumiam. Eu não era uma atleta de elite do meu colégio a caminho do campeonato nacional de natação no dia seguinte; eu era totalmente inconsequente.

Esse assédio marcou a minha vida de adolescente. Eu estudava, tinha amigos, ganhei medalhas. Por fora, era ousada, confiante, a imagem do sucesso – mas a máscara era frágil. Por dentro, vivia o trauma constante de ser agarrada, ouvir nomes misóginos e receber ordens para ficar calada. Queria estar em qualquer outro lugar, menos ali, vivendo a minha vida.

Tinha 21 anos quando contei minha saga horrenda a alguém pela primeira vez. Fui para Michigan, em um fim de semana, para comemorar o aniversário da minha melhor amiga de colégio e acabei revelando cada detalhe odioso, cada palavra dita. O alívio foi enorme, quase palpável. Chorei muito. Minha amiga chorou comigo, me abraçou, ficou quieta um tempão e depois disse: “Olha só, Diana, se segura porque a mesma coisa aconteceu comigo”. O mesmo treinador. As mesmíssimas palavras. O colchão no banheiro. A mesma manipulação velada. O mesmo “segredinho especial”. E não demoramos a descobrir que não éramos as únicas. Nunca é uma única.

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Quando confrontamos o Treinador, na frente do diretor e do advogado da escola, ele se ajoelhou aos meus pés, choroso. Disse que não entendia por que eu o estava difamando daquela forma. No dia seguinte, foi despedido. O diretor admitiu que desconfiava há tempos, inclusive até com relatos de testemunhas, mas nunca conseguiu pegá-lo em flagrante.

Ao fim dos procedimentos, ele nos perguntou, diretamente, se a demissão do Treinador nos bastava; pensei um pouco e respondi que sim. Mal sabia que ele simplesmente se mudaria para a cidade vizinha e, em um piscar de olhos, foi admitido como treinador de uma das principais universidades. Se soubesse que aquele homem continuaria a atormentar outras meninas, se tivesse a mínima ideia do tamanho do estrago que as ações dele causariam na minha vida, eu teria ido à Justiça em um piscar de olhos.

Até sua morte, em 2014, o Treinador foi prestigiado pelos colegas, por sua comunidade, sua igreja. Chegou ao Hall da Fama da profissão e ao topo da profissão: os Jogos Olímpicos. E também faz parte integrante de uma verdadeira epidemia. Esses indivíduos, quase sempre charmosos, são premiados por sua liderança, sejam os Weinsteins nojentos de Hollywood ou as figuras paternas espalhadas por nossos subúrbios. As estatísticas mostram os números assustadores de predadores sexuais entre nós.

E é por isso que é tão importante a denúncia. Precisamos montar um arquivo preciso desses abusos. Precisamos preparar as gerações futuras para falar no momento em que eles acontecem, e não ficarem presas a anos de impotência silenciosa.

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Aquelas que encontraram uma plataforma para falar e serem ouvidas, nas últimas semanas vêm descobrindo uma solidariedade e comunhão inesperadas. Toda vez que conto meu caso em frente a uma plateia, invariavelmente as mulheres se aproximam de mim depois para me contar que também são sobreviventes. Exigem minha atenção completa com um olhar insistente e dizem: “Aconteceu o mesmo comigo; foi meu padrasto”, ou “Também fui vítima”. E nos abraçamos com força. Choramos. E surge uma conexão. É a nossa versão do #MeToo.

Um dia, depois de uma palestra em Hilton Head, na Carolina do Sul, uma senhora veio falar comigo. Devagar, pegou minhas mãos, me deu um olhar significativo e, sem uma palavra, me entregou um papel dobrado, que pus no bolso para ver depois, sozinha. No hotel, li a nota e liguei para o número que havia ali. Ela chegou algumas horas depois.

A mulher me descreveu uma história que ouvira inúmeras vezes. O pai começou a assediá-la quando tinha 3 anos. Três. Como é que alguém consegue imaginar uma coisa dessas? E continuou até a adolescência, usando a ameaça tão conhecida do constrangimento – e até da agressão física, caso ela contasse. “É o nosso segredinho especial”, dizia. Ou ouvir a frase, gelei até os ossos.

Aquela conversa no meu quarto foi a primeira vez que ela disse a alguém o que lhe tinha acontecido. Chorou muito e abracei seu corpo frágil, chorando também pelos longos anos em que teve de viver com eventos indizíveis. Aí está a ironia: os horrores que sofremos são inenarráveis e, no entanto, precisam ser revelados.

Uma vez, durante uma entrevista, o repórter me perguntou, como muitos já tinham feito antes dele: “De onde vêm sua confiança e sua vontade de ferro?” Mal sabia que, poucas horas antes, eu tinha tido um surto incontrolável autodestrutivo. Chegando em casa com várias sacolas de compras, não conseguia achar a chave e comecei a xingar a mim mesma, as frutas rolando na entrada de casa. Da minha própria boca saíam exatamente as mesmas palavras que ouvi, aos gritos, do Treinador, enquanto me molestava. “Sua vadia! Você não vale nada...” Aquela jovem, magoada, ainda acredita que esses nomes resumem exatamente quem eu sou.

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Esses ataques já não são mais tão frequentes. Com o passar dos anos, o horror da minha juventude vai ficando para trás, com os eventos atuais, emocionalmente mais fortes, sobrepujando-os. Levanto da cama de manhã animada, feliz de poder ver a luz do sol. Vivo a vida com grande entusiasmo. Digo às pessoas que encaro todos os estágios da minha vida sem remorsos porque, ganhando ou perdendo, sempre dei o meu melhor. Ando na rua como se ela fosse minha. O trauma está ali, quieto, em um canto escuro da minha alma. Eu me recuso a acreditar em estragos permanentes, mas admito, prestes a me tornar uma septuagenária, que às vezes duvido se vou conseguir curar de vez aquela jovenzinha que durante tanto tempo ficou sem ação e opção.

Conte sua história. Não podemos mais nos calar.

Diana Nyad foi a primeira pessoa a fazer a travessia a nado de Cuba à Florida, nos Estados Unidos, e é autora da autobiografia “Find a Way”.