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A declaração de independência, por John Trumbull. Imagem ilustrativa.
A declaração de independência, por John Trumbull. Imagem ilustrativa.| Foto: Wikimedia Commons

Refletindo um pouco a respeito do cenário político-econômico atual, talvez o fato mais assustador do início de século 21 seja que a realidade se parece cada vez mais com as distopias do século 20.

O mundo entrou a partir do ano de 1914 no período conhecido como time of troubles segundo o historiador inglês Arnold Toynbee. As duas guerras mundiais, a Guerra Fria, os conflitos ligados à descolonização afro-asiática e os projetos de engenharia social na Alemanha Nazista e na URSS fizeram do século 20 uma época sombria da história humana.

Se a vida imita a arte, muito dos fenômenos que se desenrolaram no século 20 já estavam presentes em distopias como Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley), 1984 (George Orwell), O Senhor do Mundo (Robert Benson) e Aquela Fortaleza Medonha (C.S Lewis).

Em Aquela Fortaleza Medonha, C.S Lewis retrata os planos da organização N.I.C.E. (National Institute of Co-Ordinated Experiments) para instituir um estado totalitário em que as decisões governamentais seriam tomadas por um conselho de supostos especialistas tecnicamente capacitados.

Existe paralelo entre o que se passa na Aquela Fortaleza Medonha e o cenário atual da Covid-19?

Segundo o economista e filósofo político americano Murray Rothbard em A anatomia do estado:

Na nossa atual e mais secular época, o direito divino do Estado foi suplantado pela invocação de um novo Deus, a Ciência. O governo estatal é agora proclamado como ultracientífico, constituído por um painel de especialistas. Mas mesmo com a “razão” sendo mais invocada hoje do que em séculos passados, essa não é a verdadeira razão do indivíduo e do exercício do seu livre arbítrio; é ainda a razão coletivista e determinista, que implica sempre agregados holísticos e a manipulação coerciva de súditos passivos feita pelos seus governantes.

Muitos setores da sociedade defendem que as decisões para combater a Covid-19 devem ser “científicas”, objetivas, sem nenhuma influência política.

Contudo, esquecem-se de que toda ideologia quer ganhar para si a alcunha de “científica” por conta do prestígio que a ciência goza na sociedade contemporânea. O racismo, o comunismo, o nazismo, a eugenia foram, em algum momento, considerados “científicos”.

(O termo “ciência” passou por uma série de alterações quanto a seu conteúdo através dos séculos. No século 19, o termo passou a ser associado cada vez às chamadas “ciências naturais” - física, biologia, química - e essas passaram a ser vistas como o conhecimento mais elevado possível, passando a ser o critério de medida para aferir a contribuição de uma determinada ciência. Nesse contexto, sistemas ideológicos como o marxismo e o positivismo passaram a se autoproclamar “científicos”, buscando assim gozar da mesma credibilidade que as ciências da natureza.)

Esquecem-se de que muitos utilizam o termo “ciência” sem conhecer o seu real significado. A ciência não tem autoridade para ser um conhecimento dogmático, como bem ilustra Sir Karl Popper no livro A lógica da descoberta científica (1959).

Segundo Popper, o elemento que diferencia o conhecimento científico dos demais é a falseabilidade. A afirmação todos os cisnes são brancos pode ser falseada de duas formas: confirmando-se que todos os cisnes são de fato brancos ou encontrando um cisne negro.

A ideia de identificar todos os cisnes do mundo para constatar a cor de sua pelagem é contraproducente. Assim, Popper conclui que buscar pelo cisne negro é um meio mais eficiente, visto que, ao encontrar um único cisne negro, a afirmação todos os cisnes são brancos já está falseada. Ou seja, o mais produtivo é buscar a negação – não a confirmação – de uma hipótese.

Para ele, essa anedota exemplifica como o conhecimento científico deve se desenvolver: as hipóteses científicas devem ser constantemente submetidas a testes de falseamento.

Pela própria natureza do objeto de estudo da ciência e seu método, o conhecimento científico jamais terá autoridade dogmática para guiar infalivelmente políticas públicas.

Não deveria surpreender o debate científico em torno da eficácia do uso de máscaras e de lockdowns como medidas para proteger as pessoas contra a disseminação do vírus. O que espanta é a dureza das medidas adotadas diante do baixo conhecimento a respeito da natureza do vírus, sobre como ele se propaga etc.

Parecem proféticas as palavras escritas em 1958 por C.S Lewis em Willing slaves of the welfare state [Escravos voluntários do Estado de bem-estar]:

A nova oligarquia deve confiar cada vez mais nas recomendações dos cientistas até que, no final, os políticos se tornem meros fantoches dos cientistas. A tecnocracia é a forma para a qual uma sociedade planejada deve tender. Não gosto de especialistas no poder porque são especialistas falando fora de sua área de conhecimento. Deixe os cientistas nos falarem sobre ciência. No entanto, o governo envolve questões sobre o bem para o homem e a justiça, e quais coisas valem a pena ter e a que preço; e sobre isso o treinamento científico de nada serve para a decisão dos homens. Deixe o médico dizer que morrerei a menos que faça isso e aquilo; mas se vale a pena ter a vida nesses termos não é uma questão mais para ele do que para qualquer outro homem.

Atribui-se a Benjamin Franklin o adágio "tudo na vida é incerto com exceção da morte e dos impostos". Embora a existência de algum tipo de governo seja axiomática para muitos cientistas políticos, vale a pena fazer a mesma pergunta de Robert Nozick em seu livro Estado, anarquia e utopia (1974): por que não a anarquia?

Se por “anarquia” entende-se a busca por suprimir o exercício de qualquer tipo de autoridade, essa tentativa é logicamente impossível e acarretará consequências catastróficas para uma sociedade, desembocando no tribalismo mais pérfido ilustrado por Rothbard no caso da Ruritânia do Sul.

Entretanto, se por “anarquia” entende-se uma ordem política descentralizada e policêntrica, esse parece ser o arranjo em que a liberdade e a ordem estão mais bem preservadas. Talvez Voltaire tivesse isso em vista quando afirmou que, ao cavalgar a passeio pela França, a lei das províncias pelas quais passava mudava com mais frequência que sua montaria.

Muitas inovações institucionais se deram historicamente num contexto de ausência do Estado moderno, como o surgimento dos títulos de crédito na Península Itálica e os princípios do Direito Internacional na Idade Média.

Quanto mais o tempo passa, mais parece que o Estado moderno é, parafraseando C.S Lewis, uma fortaleza medonha; quanto mais seria um governo mundial não representativo que tomasse decisões exclusivamente técnicas a respeito de quantos filhos um casal pode ter, onde cada pessoa vai morar, o tipo de conteúdo permitido a ser veiculado nas redes sociais etc.

Assim, as palavras de Benjamin Constant soam tão verdadeiras hoje como no século 19: "Que l’autorité se borne à être juste, nous nous chargerons d’être heureux" [Que a autoridade se ocupe a ser justa, nós nos encarregaremos com sermos felizes].

José Freire Nunes é associado do IFL-SP e formado em Direito pela Universidade de São Paulo. Ele atua como assessor parlamentar na Câmara dos Deputados, advogado consultivo na área societária e é fundador da startup Magister Freire Mentoria Educacional. 

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