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As incertezas não se limitam ao Brasil, as perplexidades são a principal matéria-prima do estado de espírito contemporâneo. Poucos conseguem avaliar o que acontece e como muita coisa acontece (ou aparece) ao mesmo tempo, são cada vez menores os resíduos de percepção. Sobram traços. Em geral, gozados.

Sossegou a Guerra das Charges, mas o mundo hoje só pode ser entendido como uma sucessão de caricaturas. Só elas conseguem ser apreendidas graças à combinação de simplificação e exagero, redução e exacerbação.

Nos EUA, apesar do seu fundamentalismo – ou por causa dele – são visíveis as ruínas das convicções. Não é o número de soldados mortos no Iraque mas o número de vítimas do Karina que corroem a imagem da única potência mundial pós-Guerra Fria. O patriotismo e/ou um pseudo-respeito pelos mortos não permite mexer numa questão tão delicada.

Neste momento, não há país europeu imune à confusão e à atarantação, inclusive o triângulo de firmeza que ao longo dos últimos trezentos anos marcou a história do mundo. Inglaterra, França e Alemanha são hoje paróquias sisudas, incapazes de fazerem-se entender.

Foram para o ralo as festas pelos cem dias da primeira chanceler alemã, Ângela Markel, com a sua esplêndida agenda de convergências ideológicas. A culpa foi do gato vitimado pela gripe aviária que aumentou as sombras sobre a Copa do Mundo, a única coisa que efetivamente importa neste momento. Daria um excelente cartum (ou desenho animado) a vingança póstuma de um pardal contra o implacável felino não indicasse ela a diabólica capacidade de mutação do vírus H5N1.

O gigante alemão não sabe rir de si mesmo. Tal como a majestosa França cuja grandeza não admite graças. A Inglaterra talvez esteja sorrindo com a sua habitual discrição agora que o presidente Lula, o líder mundial dos famintos e excluídos, declarou ao "The Economist" que o nosso país não tem pressa de crescer. Os cerimoniosos ingleses não ousariam constranger o ilustre visitante com uma charge onde o mágico Lula substitui um cartaz do "Fome Zero!" (com o ponto de exclamação) por outro com os dizeres "Calma no Brasil..." (com reticências). Mas tudo é possível na pérfida Albion.

A caricatura é uma forma de espetáculo, show-bizz gratuito, vaudeville em papel mas que geralmente prescinde dele. Com meia dúzia de palavras consegue-se o mesmo efeito. Como aconteceu com as "piadas do Bocage" (o poeta José Maria Barbosa du Bocage) cujo bicentenário da morte está sendo lembrado em Portugal com muita seriedade.

Somos o país da piada pronta como diz o humorista José Simão. Herdamos este traço dos portugueses que mascaram sua melancolia com a zombaria. O genial caricaturista Bordallo Pinheiro deixou um legado de sátiras que não pode ser esquecido nos dois lados do Atlântico. Espécie de Pedro Álvares Cabral em tinta nanquim, deu um extraordinário impulso à nossa vocação para a chacota – explícita e implícita.

A sensacional revelação feita por um prestigioso matutino de que a direita brasileira afinal saiu do armário e os manifestos "esquerdistas" do líder do U2 compõem uma impagável charge do confronto ideológico que, em paragens menos risonhas e mais circunspetas, quase produziu a 3.ª Guerra Mundial.

Depois de Bono Vox, Hugo Chávez. Em seguida aos rockdólares, os petrodólares. Um cantou seu discurso-pauleira num estádio de futebol, o outro encheu os tanques da Unidos de Vila Isabel para desfilar no sambódromo carioca. Os puristas amaram o fim de um ostracismo de 18 anos mas outros puristas lamentam a definitiva mercantilização dos enredos das escolas de samba. No país do carnaval, até mesmo o carnaval foi carnavalizado.

Quem deu um choque de seriedade ao festival de gozações foi o Tribunal Superior Eleitoral que contrariou o governo, o partido do governo, o Congresso do governo e manteve a verticalização das coligações eleitorais nas eleições deste cano.

Nem tudo está perdido. A menos que o Supremo Tribunal Federal sob a batuta do ministro-chargista Nelson Jobim resolva dar a sua contribuição à palhaçada ora em curso.

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