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Pintura de Gerard (ou Gerrit) Van Honthorst (1592-1656) retrata a visita dos pastares ao Cristo recém-nascido. Óleo Sobre Tela de 1622 em exposição no Wallraf Richartz Museum (Colônia, Alemanha).
Detalhe de “A adoração dos pastores”, de Gerard van Honthorst.| Foto: Reprodução

Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu.
Isaías, 9,6

Natal: uma data sugestiva. Em todo o mundo ocidental, o calendário comemora o nascimento do menino salvador do mundo, o Cristo de Deus. Sabe-se que o Natal é compreendido, por uma maioria cognitiva, como um tempo (cultural) em que as famílias cristãs se unem para celebrar o Advento em forma de festividades. Assa-se um peru, faz-se uma farofa com moela e uvas passas, cresta-se uma leitoa, toma-se um bom vinho, dá-se e recebe-se presentes, ouvem-se músicas da ocasião, declama-se um discurso bonito etc.

Pois bem, tudo isso faz parte do “folclore natalino”. O Natal é, sem dúvida, a data mais esperada do ano. Mas, é preciso fazer uma pergunta importante para todos/as que irão participar dele: Você já pensou qual é o sentido antropológico desta data festiva? Alguém, de pronto, poderia responder: é o dia em que o menino Jesus veio para salvar a humanidade. Eu diria: resposta correta, apesar de incompleta. Afinal, deve-se perguntar também: de quê a humanidade precisa ser salva? Para dar uma resposta a essa pergunta é necessário fazer ainda outra pergunta: o que se perdeu na humanidade para justificar a sua reclamação por redenção?

O Natal é Advento não de uma nova era, mas de uma nova humanidade, agora destituída da maldade.

A história humana sofreu um golpe mortal. Orígenes chamou esse evento de “queda transcendental”, situação que marca um estado de transição da essência para existência humana. Com esse advento de transgressão do ser humano, conforme consta na narrativa da queda, um componente disfuncional entra em cena e compromete a integridade psíquica da vida humana. Depois da queda, a maldade humana se generaliza e ganha força de um movimento cultural macro cósmico. O ser humano se torna malicioso, habitualmente. Entre o bem e o mal, ele passa a fazer opção usual pelo comportamento reprovável (Rm 7,19). Como a moral nunca vem dissociado da “intenção” (psicologia racional do desejo) e, portanto, não existe comportamento destituído de sentido, logo se deduz que a inclinação humana se tornou refém de uma “cobiça incurável”. Sim! A cobiça (gr. Epithymia) é a vontade contaminada pela “intenção desatinada” que produz um “comportamento desregrado” (gr. Asotía) como forma padronizada de adaptação instintiva da vida humana num mundo em descontrole.

Neste sentido, toda interação [humana] pós-queda (segundo a tradição bíblica) passa a sugerir uma subtração intencional das verdadeiras motivações existentes no coração humano de modo camuflado (aletofobia). E, por essa razão, a maldade entra em cena social e cria tipos de relação baseados na ocultação de informações para a preservação de certos benefícios pretendidos por uma das partes implicadas nela. Isso passou a ser lógica de interação generalizada. A intenção escondida ganhou status de ameaça potencial à salubridade moral da pessoa humana. Esconder motivações começou a ser usado como ferramenta de desestabilização emocional da relação eu-tu. Por causa dela (intenção maliciosa que se esconde), a racionalidade operante do mal ganhou fôlego e poder para desfuncionalizar os componentes estruturantes da saúde psíquica das “interafetividades”.

Esse drama psicomoral da humanidade foi produzido por aquilo que a tradição teológica judeu-cristã chama de peccatum originale (pecado original). Nele, de fato, uma transição acontece: a humanidade se torna destituída de sua inocência original. Esse fenômeno antropológico pontuou o advento de uma psicopatologia coletiva subsequente, o que implicou o contágio incontido de uma idiossincrasia coletivamente compartilhada: a “suspeita paranoica universal”. O potencial alienante desta [psicopatologia coletiva] transformou o ser humano numa pessoa desconfiada de tudo e de todos (personalidade paranoide). Esse sentimento coletivizado teve o poder de criar dispositivos psíquicos capazes de acentuar uma percepção paranoica apta para produzir uma guerra intersubjetiva generalizada (interindividual).

Na noite do nascimento do menino Deus, uma luz brilhou naquele escuro céu. Esta criança, por essa razão, deverá ser modelo de santificação para a nova humanidade.

A primeira humanidade perdeu a inocência. Isso é um fato (histórico) para a tradição judeu-cristã. E com essa destituição, ela desenvolveu um vício endêmico: o de instrumentalizar-se da malícia militante habitualmente, algo que passou a ser considerado um traço determinante do seu ethos. A incapacidade de socializar benefícios e de ignorar a fome de retribuir mal com o mal viralizou, tornando-se uma espécie de traço instintivo de um sujeito universal. O embotamento generalizado, associado à desconfiança patológica (coletiva), passou a constituir a matriz ontológica do peccatum enquanto condição inalienável do humano propriamente, determinando assim (e de modo permanente) o perfil moral/funcional da velha humanidade (gr. Palaionanthôpon).

É à luz dessa análise antropológica que o fenômeno do Advento deve ser compreendido e interpretado. Sim! O Natal representa o renascimento da inocência, algo que se perdeu na primeira humanidade. Não é à toa que a criança na manjedoura foi apresentada como símbolo do ato redentor da Providência na história humana. Esse sentido dado, porém, precisa ser entendido em linguagem psicoantropológica: afinal, a malícia foi adquirida com a inserção do peccatum (gr. Hamartia) no mundo da vida humana. O que é, portanto, o pecado nesta perspectiva apresentada aqui? Ele é, fundamentalmente, a perda de algo ... A perda da inocência. Como a criança representa, simbolicamente, o estado da inocência, o Natal, então, deve ser entendido como o renascimento da inocência perdida, o que pressupõe o surgimento do ethos de uma nova humanidade (gr. Kainonanthropon) baseado nela (inocência).

A malícia (maldade) precisa ser vencida pela inocência. Essa é a mensagem da redenção histórica da vida no mundo que a fé cristã anuncia há séculos através de sua tradição querigmática. A lei judaica não tinha essa capacidade operacional de efetuá-la. A transformação, portanto, só pode ser operada pela ação santificadora do Espírito. Neste caso, o verbo santificar (gr. Hagiazô) preconiza o estado de inocência que o Espírito (e não a Lei de Moisés) deve promover na consciência desta nova humanidade, tendo a [inocência] do menino Jesus como referência única de condição moral a ser alcançada (escatologicamente). Mas, afinal, o que é a inocência? Ela é, fundamentalmente, a capacidade de reagir à maldade sofrida sem desenvolver o desejo de querer se vingar. Sim! É uma atitude que revela uma impotência moral de retribuir o mal com o mal. Ela se configura como uma habilidade psíquica que não se deixa ser seduzida pela cultura da malícia provocativa. E o simbolismo da criança incorpora todas essas definições.

O Natal é Advento não de uma nova era, mas de uma nova humanidade, agora destituída da maldade (gr. Ponería). A inocência (preconizada na figura do menino salvador) é uma vacina que a consciência humana precisa receber para ser imunizada contra a tendência de ver o mal em tudo e em todos o tempo todo (percepção paranoica do mundo). Sem ela (inocência), a tendência social é que a malícia ganhe, cada vez mais, uma forma de cultura moral generalizada, determinada pelos componentes valorativos emblemáticos da velha humanidade que corrompem, dia a dia, a consciência humana por meio de desejos enganosos e cheios de maldade (gr. Tásepithymiastêsapatês).

O que significa, então (e, portanto), a redenção histórica da humanidade anunciada pela mensagem do Natal (Advento)? A resposta é simples: ela implica reconhecer que o menino Jesus representa, moralmente, o modelo antropológico definitivo de uma nova humanidade. Essa condição é aportada com a figura simbólica da criança nascida na manjedoura. Na noite do nascimento do menino Deus, uma luz brilhou naquele escuro céu. Esta criança, por essa razão, deverá ser modelo de santificação para a nova humanidade, e nisto consiste a redenção história da vida humana no mundo. Essa é a mensagem com sentido antropológico que deve ser dada ao Natal: o renascimento da inocência perdida.

Aí está a dimensão exortativa que o advento natalício preconiza. O modelo histórico se torna a criança inocente prenunciada pelo profeta Isaías a qual haveria de ser enviada para oferecer a redenção definitiva à humanidade, retirando-a de sua própria escuridão ontológica. Não é à toa que Jesus o Cristo recomenda a Nicodemos que ele precisaria recuperar a inocência perdida nascendo de novo... Do contrário, ele não veria o reino de Deus (Jo 3,3). Neste sentido, renascer (gr. Gennêthêanôthen) significa, pois, abdicar a maldade moral herdada de um modelo cultural corrompido de humanidade. Você já tinha pensado no Natal deste modo? Celebre-o, portanto, este ano com essa consciência nova. É no resgaste psicológico da inocência que torna-se possível encontrar o caminho de cura para um novo modo de existir que a primeira humanidade perdeu.

Anderson Clayton Pires é doutor em Sociologia e em Teologia e Hermenêutica, pastor luterano e professor.

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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