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Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo
Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo| Foto: Gazeta do Povo

Conforme recentes dados apresentados pela organização Transparência Internacional, o Brasil, no ano de 2019, passou a ocupar a 106.ª posição no Índice de Percepção da Corrupção (IPC). Tal dado seguramente não revela nenhuma surpresa para os habitantes da antiga Ilha de Vera Cruz que desde tempos coloniais convivem com este cenário.

O que causa estranheza, por outro lado, é que, apesar dos estratosféricos índices de corrupção e contínua malversação do erário, dificilmente tem se conseguido êxito em definir uma responsabilidade absoluta pela prática destes ilícitos. Denota-se, dentro dessa perspectiva, que o Brasil tem sido confrontado diariamente com uma criminalidade do colarinho branco, cujos resultados são palpáveis, sendo a respectiva responsabilidade, no entanto, incerta.

Em clássica passagem da literatura, Homero relata na Odisseia a saga de Ulisses (ou Odisseu) ao retornar para Ítaca após a Guerra de Troia. No percurso, o herói adentra na caverna do ciclope Polifemo, buscando alimento para si e seus marinheiros, quando então é por aquele surpreendido; o ciclope os prende selando o local. Na sequência, já sob o receio de ser devorado, Ulisses se apresenta com o nome de “Ninguém”. Em uma astuta movimentação, Ulisses fere Polifemo, que ao pedir ajuda aos demais ciclopes não a obtém, pois, com a caverna fechada com uma pedra, ao ser indagado responde “Ninguém me está matando por astúcia”. Diante da resposta, os demais ciclopes entendem que nada está acontecendo; afinal, ninguém estaria fazendo nada. Adaptando a belíssima obra de Homero, pode-se dizer que no Brasil “Ninguém” está igualmente perpetrando os crimes do colarinho branco. “Ninguém” é responsável pelos epidêmicos quadros de corrupção.

Antes de diminuta ocorrência, nos dias atuais tem se vislumbrado o deflagrar de inúmeras persecuções penais visando investigar e punir em todas as esferas da administração pública as obscuras situações que justamente justificam a nefasta posição do Brasil no Índice de Percepção da Corrupção. Vale dizer, os números de corrupção que até então apenas compunham precipuamente uma estatística passaram a ser objeto de um maior engajamento e contraposição. Não obstante esse fato, ao se tangenciar determinados setores até então incólumes a qualquer pretensão punitiva, tem se constatado uma série de construções, desconstruções, retóricas e sofismas visando propiciar uma acefalia à prática desses delitos.

“A lei é feita para todos, mas só ao pobre obriga. A lei é teia de aranha, em minha ignorância tentarei explicar. Não a temam os ricos, nem jamais os que mandam, pois o bicho grande a destrói e só os pequeninos aprisiona. A lei é como chuva, nunca pode ser igual para todos. Quem a suporte se queixa, mas a explicação é simples: a lei é como a faca que não fere a quem empunha”. No centenário, porém atual poema El Gaucho Martin Fíerro, José Hernandez retrata com maestria o cenário que envolve as persecuções penais envolvendo a criminalidade do colarinho branco. Crimes contra a administração pública, sistema financeiro, lavagem de capitais, organizações criminosas, enfim, todas aquelas condutas que denotem características de macrocriminalidade e uma potencialidade de captura de controle de poder na sociedade, por certo, não serão aprisionadas por esta frágil “teia de aranha” chamada lei.

Consabido, pois, que o tipo penal passa por um processo de seleção e eleição pelo legislador a fim de atender interesses preestabelecidos pelo grupo hegemônico naquilo que Michel Foucault sintetizou como um binômio de “poder-saber”. Não obstante, observa-se ser processo seletivo ambivalente, na medida em que, por intermédio dos mesmos métodos e discursos, condutas que anteriormente foram catalogadas como delitos são descontruídas com a mesma roupagem de cientificidade para amortizar a responsabilidade daqueles que a praticaram.

Não se pretende adentrar na questão criminológica dos tipos penais, mas sim analisar os motivos que ensejam recorrentes incongruências e tamanha recalcitrância em se responsabilizar aqueles que praticam crimes enquadrados no timbre de “colarinho branco”.

Com o advento das leis de Lavagem de Capitais e das Organizações Criminais, inúmeros avanços sobrevieram em desvelar notória, porém indecifrável criminalidade. Visando acompanhar e ser efetivo no enfrentamento a uma criminalidade cada vez mais dissimulada e sofisticada, os referidos diplomas normativos conferiram meios para que se galgasse acesso a importantes informações sobre estes delitos. Com o tempo os resultados apareceram: investigações, operações, denúncias e, principalmente, valores desviados recuperados. Como um endosso maior da comprovação da ilicitude do que estava sendo investigado, deparou-se, de forma recorrente, com a localização e reaproveitamento de elevado numerário (milhões, bilhões) decorrente dos crimes então perpetrados. A sistêmica corrupção, no entanto, gerou um estado de entorpecimento na sociedade a ponto de não causar elevada ojeriza a notícia de que algumas centenas de milhões foram desviados. Infelizmente, corroborando o índice mencionado no início, tornou-se fato corriqueiro nos quadros brasileiros.

Em contrapartida a essa materialidade delitiva empiricamente demonstrável, a definição dos protagonistas dessas condutas tem se revelado cada vez mais uma tarefa homérica e, até poderíamos falar, demonstrável apenas por “provas diabólicas”.

Todas essas informações convergem para uma conclusão: no Brasil os delitos do colarinho branco são de materialidade demonstrável, porém de autoria costumeiramente improvável.

Como dito acima, para se justificar certas posições desconstroem-se os tipos penais, mitigam-se métodos adotados, tudo devidamente argumentado e estruturado a fim de propiciar a maior legitimidade e cientificidade possível. Discursos eloquentes e argumento de autoridade reforçam essa posição. Citações e retóricas são utilizadas de forma tendenciosa para justificar certas posições. Arthur Schopenhauer compara a pessoa que se vale de inúmeras referências com os homens que usam perucas: “A peruca é o símbolo mais apropriado para o erudito puro. Trata-se de homens que adornam a cabeça com uma rica massa de cabelo alheio porque carecem de cabelos próprios. Da mesma maneira, a erudição consiste num adorno com uma grande quantidade de pensamentos alheios, que evidentemente, em comparação com os fios provenientes do fundo e do solo mais próprios, não assentam de modo tão natural, nem se aplicam a todos os casos ou se adaptam de modo tão apropriado a todos os objetivos, nem se enraízam com firmeza, tampouco são substituídos de imediato, depois de utilizados, por outros pensamentos provenientes da mesma fonte”.

Agregando elementos nesse palco que se forma na persecução penal envolvendo os delitos do colarinho branco, emergem interlocutores midiáticos, formadores de opinião trajando as mais diversas “perucas” e disseminando informações conforme interesses que atendam. O reality show está estabelecido. Processos com milhares de dados, extratos, testemunhas, informações contábeis e empresariais são resumidos com sofisticada simplicidade e manifestações são emitidas com impressionante singeleza. Tem-se, assim, opiniões formadas por pessoas que não analisaram uma ínfima fração do processo, baseando-se muitas vezes pela “sinopse do resumo do organograma” dos fatos reportados por alguém. Estabelece-se a crítica argumentativa pelo “ouvi dizer”. Se o argumento vier acompanhado de alguma citação eloquente, então surgirá uma máxima insofismável. O passo seguinte é iniciar-se um duelo retórico em que se sagrará vencedor aquele que sacar o melhor argumento mais rápido, ainda que açodado e irrefletido.

A propaganda nunca se distanciou dos círculos de poder e não é porque se está sob a estrutura de um “devido processo legal” que este não sofrerá o influxo de interesses ocultos. Um processo pode estar lastreado na mais sofisticada ornamentação jurídica, amparado por neologismos e fórmulas revestidas de requintada elegância forense que nada mais fazem do que dissimular aos olhos da plateia interesses escusos que a ele subjazem.

O que se observa é que os trâmites que buscam averiguar a responsabilidade daquelas situações materialmente comprovadas têm passado por um verdadeiro “niilismo probatório”. Tudo é relativo. Delitos como o de lavagem de dinheiro, cuja essência é justamente o seu caráter dissimulatório, são rechaçados por não terem a comprovação palpável como ocorre, por exemplo, em um delito contra a vida, assim como outras demonstrações que fogem completamente da manipulação que envolve essa macrocriminalidade econômica. São crimes que não têm os vestígios popularmente conhecidos como a “marca do batom”, mas sim, poder-se-ia dizer, o “perfume na roupa”.

Urge ressaltar, por imprescindível, que longe se está de eleger aqueles que investigam tais ilícitos como salvadores da pátria ou irrepreensíveis. O ponto reside, e não se confunda ou desvirtue, no fato de que, a despeito da inequívoca malversação de recursos públicos e índices exorbitantes de corrupção que permeiam desde pequenas atividades em municípios do recôndito brasileiro até as grandes esferas da administração federal, a comprovação da autoria delitiva se faz extremamente dificultosa neste duelo que se estabelece. Por vezes, como reiteradamente dito, sobeja a materialidade, porém a autoria é incerta ou, por que não, seguindo a fantasia de Homero, de “ninguém”.

Nesse panorama de uma matemática que simplesmente não fecha, resta o anseio de que a materialidade delitiva nesses delitos de tamanha repercussão e danos ao Brasil possa ser elucidada sob um processo legal devidamente respaldado e sem análises, parafraseando o ministro Roberto Barroso, conforme for o réu. Caso contrário, só nos resta a conclusão milenar de Confúcio: “Madeira podre não se pode entalhar”.

Fernando Procópio Palazzo, especialista em Direito Penal e Criminologia, é assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.

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