| Foto: Carlos Moura/SCO/STF

Denunciado por caluniar a Pátria tachando-a de “república de bananas” (assim, com minúsculas), recorro à chamada “exceção da verdade”, instituto à disposição da defesa pelo qual cabe ao acusado apresentar provas de que disse simplesmente a verdade, por mais ofensiva que possa soar.

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Para não cansar o júri, limitar-me-ei a exibir, brevemente, nove provas fresquinhas, recém-colhidas, que avalio como suficientemente contundentes – já que impensável, cada uma delas, numa República com “R” e sem o qualificativo vegetal. E prometo que, daqui em diante, vou me esforçar para, resistindo à onda retrô que nos assola, evitar mesóclises e afins.

Prova 1. Autoridades do Ministério Público e do Judiciário promovem fartos e longos festivais de vazamentos de conteúdos sob segredo de Justiça, segundo flagrante cálculo político.

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Como reage a opinião pública-publicada-televisionada? Se esbalda.

Prova 2. Juiz de direito recebe grampo ilegal envolvendo a Presidência da tal república e manda correndo para um telejornal divulgar o conteúdo. O juiz não apenas não é punido como continua julgando um dos grampeados, contra quem ele mesmo, o juiz, praticou crime ao divulgar o grampo ilegal.

Para a opinião pública-publicada-televisionada, contra esse réu aí tá valendo.

Prova 3. Depois de um impeachment presidencial cuja constitucionalidade é questionada por uma relevante porção dos cidadãos e grande parte dos juristas da tal república (incluindo um conhecido ex-ministro da corte suprema, que o qualifica de “tabajara”), um novo governo assume o poder. Em poucos meses, esse novo governo bate recordes de impopularidade e denúncias criminais. Para não deixar dúvidas quanto à sua legitimidade democrática, posta em dúvida desde o início, o novo governo adota um programa e propõe reformas de grande impacto, impopulares (segundo as poucas pesquisas de opinião divulgadas), incompatíveis com as propostas vitoriosas nas urnas e, portanto, com o mandato popular/eleitoral em vigor.

A opinião pública-publicada-televisionada apoia com fervor a radical mudança de rumo sem consulta ao povo.

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Nesta república vê-se coisas que seriam impensáveis numa República com “R” e que não fosse de bananas

Prova 4. Esse mesmo novo governo, que contou, pelo menos na opinião de parte importante da sociedade, com vista grossa da cúpula do Judiciário para chegar ao poder, vai logo aprovando um gordo aumento salarial para os servidores do mesmo Judiciário. Aumento que, conforme a lógica corporativa local, costuma ter efeito cascata em todo o sistema de Justiça, sistema esse que, antes do aumento, já era o mais caro de que se tem notícia no planeta, em termos de porcentual do PIB.

A opinião pública-publicada-televisionada murmura uma breve objeção.

Prova 5. O programa e as reformas do novo governo, unidos pelo “nome fantasia” Ponte para o Futuro, devastam o orçamento do setor de ciência, tecnologia e inovação.

A opinião pública-publicada-televisionada lança um olhar bovino sobre o caso (lapso de atenção que não chega a prejudicar o ritmo da mastigação... ops!, desculpem... da produção de notícias sobre a caçada nacional aos corruptos).

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Prova 6. Entre as reformas promovidas pelo novo governo e aprovadas pelo Congresso, uma que responde pelo apelido “Teto de Gastos” fixa limites para orçamentos públicos por 20 anos. Emenda constitucional de teor inédito no mundo, é avaliada pela ONU como socialmente regressiva e por especialistas de vários matizes como simplesmente impraticável. Se praticada, mesmo que parcialmente, seria talvez a lei de maior impacto social na história recente da tal república. Todos os vários questionamentos sobre a sua constitucionalidade e compatibilidade com tratados internacionais assinados pelo país são rejeitados por decisão de uma só pessoa, um ministro da corte suprema da tal república, que, como dizem os nativos, “mata no peito” e decide não levar as questões ao colegiado para discuti-las e decidi-las, em sessão pública, com o auxílio das dez outras cabeças que compõem a corte. Afinal de contas, como explica didaticamente o ministro, todo mundo sabe que os gastos e investimentos públicos de uma nação são como o orçamento doméstico, e a boa dona de casa, além de levantar cedo, é muito econômica.

A opinião pública-publicada-televisionada é uma boa dona de casa.

Prova 7. Outro ministro da mesma corte suprema da tal república, que também atua como fornecedor de serviços para o próprio Judiciário e comenta assuntos da mesma Justiça e da tal república com a desenvoltura de um jurado de programa de calouros, é ainda mais desenvolto no papel de conselheiro do chefe do novo governo, que, alvejado por um crescente número de denúncias e cercado de portadores de malas de dinheiro, poderá ser julgado na tal corte suprema e por esse mesmo ministro-amigo-conselheiro.

Não querendo comprar briga com tão polivalente autoridade, a opinião pública-publicada-televisionada volta e meia lhe dá conselhos de etiqueta, como a lhe dizer: “depois de ajudar a trazer as instituições da república para a atual situação, temos de afirmar que elas estão funcionando... para não sabotar o nosso esforço, basta praticar um pouco de hipocrisia, ora bolas”.

Leia também:A lei está do lado de Moro (editorial de 19 de março de 2016)

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Prova 8. Um general da ativa diz, numa palestra a um grupo da maçonaria cujo vídeo viraliza, que as Forças Armadas fazem planos para, por meio de intervenção militar, impor “soluções” ao país, caso as instituições da tal república, especialmente a Justiça, não façam o serviço visto, por ele e por seus... digamos, “colegas de planejamento”, como necessário. A confissão de conspiração contra a ordem constitucional, por parte de um alto oficial – que, numa República, seria no mínimo a notícia do ano, disparadora de imediata punição, acompanhada por promessas de investigação e notas de repúdio de todas as instituições envolvidas –, na tal república provoca outra reação em cadeia, mais parecida com um toque de recolher cabeças para um bando de avestruzes.

A opinião pública-publicada-televisionada honra seus discursos em defesa da democracia e do Estado de Direito – e seus pedidos de perdão por apoio à ditadura militar – com editoriais direto ao ponto, firmes e destemidos (sabe aquele emoji piscando um olho com sorriso malandro? Era para estar aqui).

Prova 9. Indicadores socioeconômicos mostram que, recém-saída do mapa mundial da fome pela primeira vez na sua história, a tal república já está no rumo de volta.

A opinião pública-publicada-televisionada acha esse assunto o ó. Depois do empenho para ocultar ou minimizar a notícia da saída do mapa – que seria festejada como poucas numa República que não fosse a tal –, que não lhe venham com esse trem de novo, ainda mais na contramão!

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Epa! Falando em trem, me lembrei do causo de um certo helicóptero... Mas, em respeito à paciência do júri e ao meu próprio compromisso, como dizem os gringos (que tanto zelam por esta república), a defesa descansa.

Flavio Lobo, jornalista, assessor e consultor de Comunicação, é mestre em Comunicação e Semiótica.