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O Abolicionismo, obra de Joaquim Nabuco (1849–1910), se revela como um verdadeiro diagnóstico das mazelas da sociedade brasileira dos tempos passados. No olhar de alguns especialistas, representa o Brasil do século 19, sendo o mais importante livro com vistas a se entender a formação sociocultural do povo brasileiro. Em artigos publicados na Folha de S.Paulo, Evaldo Cabral de Mello e José Murilo de Carvalho defenderam a atualidade da obra e ressaltaram a sua grande importância para a análise sociológica brasileira. Aos interessados no tema, trata-se de um livro (juntamente com Os escravos, de Castro Alves) que não só tinha como autor um dos líderes do movimento de emancipação, como se tornou – na literatura e na ciência política – livro de referência sobre a questão. Portanto, por onde devemos começar para entender sua importância?

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Creio que a melhor maneira de abordarmos o conteúdo da obra de Nabuco é fazendo uma breve retomada histórica do próprio assunto tratado, isto é, o progresso da escravidão no Brasil e a luta pela sua abolição. A escravidão, como se sabe, é uma velha prática na história da humanidade, porém “jamais o tráfico de escravos fora um negócio tão organizado, permanente e vultoso quanto se tornou depois que os portugueses estabeleceram, em meados do século 16, uma vasta rota triangular que uniu a Europa, a África e a América e transformou milhões de africanos em lucrativa moeda de troca”.

Segundo Marcos Costa, “pode-se dizer que o comércio de escravos se tornará o grande negócio de Portugal no Brasil, no período de 1500 a 1854”. Os fatores principais da gênese da escravidão de modo tão sistemático e generalizado no Brasil foram, em primeiro lugar, a (parcialmente) inútil tentativa de escravizar os índios – em 1570 ocorre a proibição legal da prática de escravizar índios, incentivando a importação de escravos. Como escreveu Sérgio Buarque de Holanda em seu clássico Raízes do Brasil, “verificou-se, frustradas as primeiras tentativas de emprego do braço indígena, que o recurso mais fácil estaria na introdução de escravos africanos”.

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Em segundo lugar, a escravidão teve êxito no Brasil devido à facilidade de adquirir escravos diretamente com mercadores africanos na Guiné, Costa da Mina, Congo, Angola, Luanda, Benguela, Cabinda e Moçambique, entre outros, trocados, sobretudo, por bebidas alcoólicas armas e fumo. Foi dessa forma que o sistema escravocrata foi nascendo e se tornando parte do Brasil. Leandro Narloch nos lembra que, na época, a escravidão se tornou tão frequente, explícita e natural que “Nabuco dizia que o tráfico negreiro provocou uma união de fronteiras brasileiras e africanas, como se a África tivesse aumentado seu território alguns milhares de quilômetros”.

A escravidão acompanhou fielmente os períodos de transição da história do Brasil, fazendo parte do desenvolvimento do país a tal ponto de ter se tornado indispensável para seu andamento, assim como o combustível para um carro. A frase mais emblemática que sintetiza a importância do escravismo no Brasil Colonial (e Imperial) veio do jesuíta Antonil, que definiu os escravos como “as mãos e os pés do senhor do engenho porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente”.

Nos períodos de mudanças no eixo econômico nacional – primeiro com o açúcar, depois com o ouro e, por fim, com o café –, o trabalho escravo permanecia imprescindível; os escravos trabalhavam tanto na área de serviços (carregadores e vendedores ambulantes) como nas atividades domésticas. Descreveu-nos a realidade da época o historiador Buarque de Holanda: “a presença do negro representou sempre fator obrigatório no desenvolvimento dos latifúndios coloniais”. A agricultura, base de toda a produção, receita e renda, sem o trabalho escravo, era considerada irrealizável.

Por assim ter permanecido por tanto tempo, o Brasil começou a sentir os efeitos geográficos, sociais, políticos e econômicos da escravidão – efeitos esses apontados com maestria por Joaquim Nabuco em seu livro. Apesar de a escravidão ser um regime vergonhoso e vil, uma “escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores”, conforme caracterizava Nabuco, “o Brasil, pouco depois de Cuba, foi o último país da América a libertar os escravos”.

A história da abolição da escravidão no Brasil foi lenta e progressiva; pode ser resumida – após a sua chegada – por meio de uma ótica jurídica (apesar de Nabuco ter escrito que “a posição legal do escravo resume-se nestas palavras: a Constituição não se ocupou dele”) da seguinte maneira: 1. Cria-se a Lei Eusébio de Queirós (1850), que extinguia o tráfico de escravos no Brasil, “fruto de uma astuciosa negociação entre o imperador, políticos ligados a ele, o Barão de Mauá e os traficantes”; 2. Cria-se a Lei Paranhos, ou Lei do Ventre Livre (1871), “um passo importante e gigantesco, não para os escravos, pois a vida deles, na prática, pouco mudaria, mas para as ambições da princesa”; 3. Cria-se a Lei dos Sexagenários (1885); e é nesse período que a abolição chega a sua fase mais dramática, contexto da obra de Joaquim Nabuco.

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Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, o movimento popular abolicionista só adquiriu força na década de 1880, tão enraizado estava o escravismo na sociedade. Os abolicionistas, defende Narloch, “apareceram um século depois de Zumbi e a 7 mil quilômetros da região onde o Quilombo dos Palmares foi construído”. Em 1880, a monarquia se encontrava cercada por desafios de todo tipo, especialmente em relação à abolição da escravidão. Em 1880 foi fundada a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, e em 1883 a Confederação Abolicionista. Neste ano, Joaquim Nabuco lança O Abolicionismo. O jornalismo – essencialmente a liberdade de imprensa – foi de extrema importância para a propagação dos ideais abolicionistas.

Por meio de “duas grandes correntes – moderados (cujo ideólogo era Joaquim Nabuco) e radicais (entre os quais se destacavam nomes como Silva Jardim, Luís Gama, o conhecido “rábula negro” morto em 1882, José do Patrocínio e Antônio Bento) – o abolicionismo tomava novamente as ruas e os jornais: Jornal do Commercio, A Onda, A Abolição, Oitenta e Nove, A Redenção, A Vida Semanária, Vila da Redenção, A Liberdade, O Alliot, A Gazeta da Tarde, A Terra da Redenção, O Amigo do Escravo, A Luta, O Federalista, bem como dezenas de panfletos e pasquins”.

O último capítulo jurídico definitivo da luta abolicionista aconteceu em 1888, quando ocorreu o ato considerado como o mais revestido de sentido de toda a nossa história. Às 15h15 de um domingo de sol, escreve Eduardo Bueno com um tom pessimista, “13 de maio de 1888, não só livraria [o Brasil] de seu passado conturbado como, ainda hoje, parece incapaz de lidar com ele”. Outra historiadora, em tom mais otimista, porém reservado, descreve a ocasião: “redigido de modo simples, o texto da Lei Áurea saiu curto de direto: ‘É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil. Revogam-se as disposições em contrário’. O Treze de Maio redimiu 700 mil escravos que representavam, a essas alturas, um número pequeno no total da população geral, estimada em 15 milhões de pessoas”.

A princesa Isabel, interrompendo descanso em Petrópolis, voltou ao Rio e assinou a Lei 3.353 – aprovada pelo Parlamento por 85 votos a nove. Foi com uma pena de ouro cravejada de brilhantes que a lei que extinguia a escravidão no Brasil foi autorizada oficialmente. Esse episódio de “1888 representa o marco divisório entre duas épocas; em nossa evolução nacional, essa data assume significado singular e incomparável”. Contudo, apesar de a lei de 13 de maio ter sido recebida no Brasil com uma explosão inicial de júbilo e com muita expectativa, constituindo-se no ato mais popular do império, paradoxalmente foi “um dos fatores a provocar o fim da monarquia no Brasil”. Marcos Costa escreve que “poucas vezes no Brasil se viu uma sociedade tão polarizada como em 1888–1889”.

Mas qual o papel de O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco, neste processo? Nabuco foi um político, diplomata, historiador, jurista, orador e jornalista brasileiro formado pela Faculdade de Direito do Recife. Foi também um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Poderia ser considerado como um intelectual público, formador de opinião. Para Fernando Perlatto, “O Abolicionismo deve ser analisado como uma obra de seu tempo, na medida em que reflete uma série de questões vigentes no período, permitindo aos historiadores e outros estudiosos adentrarem nos meandros de uma sociedade tão complexa como a brasileira do final do século XIX”.

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Pensador brasileiro tratou de analisar com precisão a negatividade da escravidão para o Brasil da sua época e das consequências sociais e políticas para o futuro.

Em O Abolicionismo – obra lançada exatamente cinco anos antes da abolição oficial –, o pensador brasileiro tratou de analisar com precisão a negatividade da escravidão para o Brasil da sua época e das consequências sociais e políticas para o futuro. Em 17 capítulos curtos e diretos, Nabuco versa sobre temas obscuros com uma profundidade e agudeza de espírito singular. Nabuco define conceitualmente o abolicionismo, separando-o de movimentos que pareciam se assemelhar. Vê em um Partido Abolicionista a união política nacional pela causa da escravidão. Traça os caminhos ainda novos do racismo no Brasil através da escravidão, pauta-se em princípios morais e valores mais básicos para criticar o sistema e contra-ataca o quietismo conservador de sua época.

Nabuco prossegue, desnudando as ilusões presentes nas leis “benéficas” aos escravos, destrói a pretensão positiva da lei de 1871, juntamente com as promessas de emancipação, descreve a ilegalidade da escravidão, fundamenta o abolicionismo em pautas gerais, e chega até a escravidão de seu tempo, revelando de modo tão claro – e ao mesmo tempo assombroso – as influências negativas da escravidão no território, população, sociedade e política. Por fim, Nabuco convoca seus leitores para a necessidade da abolição o mais urgente possível e o perigo da sua demora, demonstrando também seus receios (como uma revolução ou convulsão social) e as consequências.

Tão engajado e esperançoso esteve nesta obra que, depois, ao ser informado sobre a efetivação da abolição, registrou sua emoção: “Joaquim Nabuco – nessa época chamado de Príncipe da Abolição – escreveu em 23 de maio de 1888: ‘Está feita a abolição! Ninguém podia esperar tão cedo tão grande fato e também nunca um fato nacional foi comemorado tanto entre nós. Há vinte dias vive esta cidade um delírio […]. A monarquia está mais popular do que nunca’”. O livro de Nabuco chocou os brasileiros do século 19 e ainda deve chocar quem o ler a fim de conhecer a história de nosso país.

A obra nos traz um senso mais profundo da crueldade da escravidão por apelar para nossos instintos morais e nos ativa a continuar combativos contra as consequências da escravidão em nosso país, e vigilantes contra as novas absorções da lei pela ganância econômica, que subjugam indivíduos em prisões físicas, psíquicas e econômicas, manipulando as leis e o sistema jurídico e moral. A prosperidade pública e individual, em todos os sentidos, está sempre em uma proporção quase matemática para o grau de liberdade e igualdade perante a lei de que gozam todos os habitantes do Estado.

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Fernando Razente é historiador com atuação em rádio, assessoria e mídia.