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| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

Trabalho é meio de vida e não meio de morte. Essa afirmação confronta a realidade de milhões de profissionais brasileiros que são obrigados a enfrentar jornadas extenuantes de trabalho. E uma das características mais marcantes dos últimos tempos é a conexão 24 horas com o trabalho. Celulares, tablets, aplicativos, e-mails, entre outras ferramentas e recursos provenientes das novas tecnologias transformaram os trabalhadores em verdadeiros reféns.

A cultura profissional brasileira está prejudicando a saúde do trabalhador em todos os aspectos: físico, emocional e psíquico. As empresas criaram uma rotina em que partem da premissa de que “trabalhador bom é aquele que fica on-line”. Será?

Lógico que emergências, plantões e o gerenciamento de uma crise podem fazer que o empregado esteja à disposição da empresa por algumas horas a mais do que as da sua jornada habitual. Entretanto, isso deveria ser uma exceção e não a regra. Atualmente, o trabalhador que não fica na empresa ou à disposição dela por 10, 12, 14 horas passa a ser discriminado. Os seus chefes e mesmo colegas de profissão o fazem parecer um “peixe fora d’água” por trabalhar as horas estabelecidas em contrato.

É necessário desconectar do trabalho, ter uma vida social, cuidar da família, brincar com seus filhos, ter momentos de lazer, tomar um chope com os amigos, sair para jantar com a esposa ou frequentar uma academia. É essencial para conseguir descarregar os problemas, renovar as ideias e as baterias para outro dia de trabalho. A conexão 24 horas cria e agrava problemas de saúde, sejam eles físicos ou psicológicos.

A conexão 24 horas cria e agrava problemas de saúde, sejam eles físicos ou psicológicos

Vale citar o exemplo de um CFO de uma grande empresa que só pôde tirar e gozar suas férias fora do país após contratar um pacote de dados que possibilitasse que ele respondesse e-mails e mensagens pelo celular. Em um dos dias de seu descanso, o executivo respondeu mais de 60 e-mails, ou seja, trabalhou como se estivesse em seu escritório e não pôde desfrutar da companhia da esposa e dos filhos. Isso é saudável? É realmente necessário a empresa privar seus funcionários das férias? Criar uma pressão psicológica que não o deixa relaxado para curtir momentos preciosos com sua família?

Alguns números recentes são reflexo desse atentado contra a saúde do trabalhador. As dificuldades geradas no meio ambiente do trabalho provocam uma série de problemas como estresse, ansiedade, transtornos bipolares, síndrome de burnout – caracterizada por estresse profissional, exaustão emocional e tensão exorbitante gerada pelo excesso de trabalho –, esquizofrenia e transtornos mentais relacionados ao consumo de álcool e cocaína, entre outros males. O CFO de que falamos, por exemplo, toma remédios para conseguir sobreviver à rotina desgastante do trabalho.

Os casos de transtornos psiquiátricos e doenças mentais no ambiente de trabalho estão crescendo no Brasil. Em 2016, foram registrados pela Previdência Social mais de 199 mil casos de pessoas que se ausentaram das empresas públicas e privadas por sofrerem das enfermidades acima citadas. Esse número supera o total registrado em 2015, que foi de 170,8 mil casos de afastamentos. Ainda segundo a Previdência Social, registrou-se em 2016 o afastamento de 75,3 mil trabalhadores em razão de quadros depressivos, com direito a recebimento de auxílio-doença, o que representa 37,8% de todas as licenças médicas motivadas por transtornos mentais e comportamentais no mesmo ano. A Organização Mundial de Saúde (OMS) revela que até 2020 a depressão será a doença mais incapacitante do mundo. A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) estima que entre 20% e 25% da população teve, tem ou terá um quadro de depressão em algum momento da vida. E, sem dúvida, essa conexão de 24 horas com o trabalho levará ao crescimento desses índices e estimativas.

Recentemente, foi aprovada na França uma lei para desconexão do trabalho. O governo francês resolveu estabelecer uma fronteira entre a vida pessoal e profissional para evitar, assim, novos casos de doenças relacionadas ao trabalho e vinculadas pelas novas tecnologias. E, para enfrentar o fenômeno, o direito à desconexão foi publicado no código do trabalho francês. A nova medida prevê que toda empresa com mais de 50 funcionários tenha de abrir negociações entre as partes para chegar a um acordo conforme as necessidades de ambas as partes. Caso não se consiga chegar conjuntamente a regras que garantam o direito de se desconectar, o empregador terá de redigir, ele mesmo, uma regulamentação sobre a questão.

Leia também:O direito a se desconectar do ambiente de trabalho (artigo de Janaína Eichenberger, publicado em 20 de fevereiro de 2017)

Leia também: O jogo da produtividade medida em horas de trabalho (artigo de Claudio Stringari, publicado em 20 de julho de 2016)

A lei francesa é importante para refletirmos sobre o uso das novas tecnologias nas relações trabalhistas e sobre a saúde do trabalhador. A relação deve ser saudável para as duas partes. Isso não exclui a possibilidade de o chefe enviar um e-mail ou uma mensagem fora do horário habitual de trabalho, mas possibilita que o funcionário não se sinta culpado por não responder de imediato a essas demandas.

No Brasil, a Justiça do Trabalho enfrenta esses casos de extensas jornadas e da conexão abusiva dos funcionários aplicando em suas decisões o dano existencial. Criado pela jurisprudência, ou seja, pelo grande número de casos decididos por uma mesma corrente no Judiciário trabalhista, o dano existencial combate as jornadas extenuantes e a necessidade da conexão e disponibilidade constante com a empresa e com o patrão.

O dano existencial é uma espécie de indenização decorrente do impedimento que o trabalhador sofre em desfrutar sua vida pessoal, o que afeta de forma negativa e perigosa sua qualidade de vida. É uma ferramenta jurídica para impedir a frustração dos projetos pessoais e das relações sociais dos trabalhadores provocada por condutas ilícitas das empresas. E as condutas são ilícitas porque, devido a uma série de flexibilizações – inclusive as aprovadas na reforma trabalhista brasileira –, atentam contra princípios constitucionais. O trabalho tem como um dos seus direitos fundamentais a saúde, que está diretamente ligada ao respeito à limitação da jornada, à dignidade humana, ao valor social do trabalho e à função social da empresa. São direitos constitucionais, cada vez mais desrespeitados.

O trabalhador tem direito à desconexão. E essa recente reforma nem sequer tocou no tema. Pelo contrário, flexibilizou direitos de forma inconstitucional e certamente criará uma nova geração de trabalhadores doentes.

Ricardo Pereira de Freitas Guimarães, mestre e doutor em Direito do Trabalho, é professor de Direito e Processo do Trabalho da pós-graduação da PUC-SP.
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