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| Foto: Gorka la Barbera de Bustos/Free Images

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que aprovou o ensino religioso confessional nas escolas públicas, tem sido debatida nos diversos setores da sociedade brasileira. Para muitos, é uma vitória da maioria da população que assim o deseja; para outros, a decisão viola o conceito de Estado laico. Como entender a questão complexa e seus desdobramentos?

A discussão deve começar pelo papel da experiência religiosa humana. O enfoque primeiro deve ser histórico. A trajetória da modernidade europeia trouxe a crítica ao domínio da religião institucional, domínio do Estado e da sociedade em geral. O Iluminismo (Aufklärung) torna-se a nota predominante no cenário do pensamento alemão e europeu, e atingirá o mundo da cristandade, bem como o judaico (Haskalá).

A crítica à religião trouxe uma ruptura nítida, afastando-a da vida pública e relegando-a à dimensão privada e individual. A antiga verdade tornou-se opinião. Pensadores como Ludwig Feuerbach, Karl Marx e Sigmund Freud contribuíram para esta percepção de que a religião, e não apenas a instituição religiosa, é uma espécie de desequilíbrio do ser humano.

O perigo que existe na religião é o perigo que há no ser humano: não é inerente à religião em si

Mas isso era o século 19. Os tempos atuais são outros. Beberam das águas pós-trauma da experiência europeia. Estudiosos da fenomenologia da religião, que a compreendem como experiência do humano, análoga à experiência estética, por exemplo, resgataram a autenticidade da fé na dimensão antropológica. Nomes como o do romeno Mircea Eliade e do alemão Rudolf Otto (em Das Heilige) demonstraram como a expressão de fé diante da categoria do sagrado é uma realidade indissociável da trajetória humana. Portanto, não é possível construir uma sociedade sem pensar em religião. Deve haver um “caminho de inclusão” para os “marginalizados que creem”. Não é mais um defeito ou algum tipo de anomalia de pessoas mais ignorantes. A pergunta é: como fazer isso na realidade brasileira hoje?

É curioso notar que a Europa, mais secular e menos religiosa do que o Brasil (e as Américas), tem na maioria absoluta dos seus países ensino religioso confessional na escola pública, como na Alemanha, por exemplo. Já em países de religiosidade efervescente da América Latina isso parece ferir a laicidade do Estado. O que surpreende é que os europeus estudam e conhecem religião e não a praticam muito; os brasileiros são muito religiosos e parecem entender bem menos do assunto. A religião precisa estar na escola. É parte da vida social, cultural e histórica de qualquer povo. Ignorá-la ou suprimi-la é um erro. O perigo que nela existe é o perigo que há no ser humano: não é inerente à religião em si.

Opinião da Gazeta: O STF e o ensino religioso nas escolas públicas (editorial de 22 de agosto de 2017) 

Nossas convicções:O Estado laico

Diante dessas considerações, deve-se perguntar como deveria ser esse ensino religioso. Quais os seus limites? Como fazê-lo contribuir para a sociedade? É importante que seja incluído, mas também pode ser perigoso. O próprio pensamento bíblico traz essa reflexão: o primeiro assassinato da história bíblica (Caim mata Abel) acontece em função de um culto. A fé pode matar e não apenas salvar. Portanto, valem aqui algumas ponderações práticas.

Todas as escolas deveriam ter um curso introdutório de fenomenologia da religião. Uma introdução básica da religião em si. O curso não pode ter perspectiva confessional. O enfoque deve ser filosófico e sociológico. Deve haver limites sobre quais confissões de fé podem participar desse ensino público. Como ocorre na Itália, nem toda religião é reconhecida. Qualquer indivíduo pode fundar uma religião hoje e amanhã exigir seu ensino no país. Somente expressões de fé histórica e culturalmente reconhecidas deveriam ter espaço (ajustes serão necessários). Aliás, as religiões deveriam ser avaliadas pelo bem que trazem à sociedade, já que sugerem que pretendem melhorar o mundo. Religiões sem expressão de benefício cultural, educacional e social parecem comprovar que não têm muito a contribuir.

Leia também:Ensino religioso confessional, uma catástrofe anunciada (artigo de Gustavo Biscaia de Lacerda, publicado em 8 de outubro de 2017)

Não se deve incluir neste ensino religioso a “dimensão ritualística”. A proposta é de ensino e não de prática cúltica. Imagine o que seria uma escola onde ocorrem sacrifícios, velas acesas, batismos, alunos em transe, etc. Isso não faz sentido. Limites devem ser definidos. A proposta confessional de expressões de fé consagradas na história e na cultura deve ter como seu representante docente alguém que tenha formação no assunto. Não se pode admitir que pessoas despreparadas ocupem este espaço. Somente aqueles que têm formação teológica (ou equivalente) deveriam desempenhar este papel.

Liberdade com responsabilidade deve ser o tom dessa experiência. Qualquer aluno deve poder escolher participar da aula de religião que lhe interessar. Os que não quiserem participar também devem ter esse direito. Deve haver mútuo respeito e facilitação do entendimento entre as religiões, preservadas suas perspectivas distintas. A mídia pode contribuir para isso, tornando notório tudo o que há de bom nas religiões e ajuda a construir uma sociedade melhor. Pessoalmente, conheço trabalhos sociais extraordinários feitos por evangélicos, judeus, católicos e espíritas.

O Brasil tem uma história de miscigenação racial e cultural. Nossa trajetória maior é a de tolerância. Em poucos lugares do mundo tanta gente diferente vive junto de maneira tão tranquila, amigável e pacífica. Essa deve ser o caminho da experiência religiosa também. Não se pode entender a história, a cultura e a própria identidade sem entender a fé e o seu transcurso histórico. Excluir a religião é sepultar o que somos. É preciso incluir, dialogar e construir.

Luiz Sayão é pastor, teólogo e hebraísta da Igreja Batista Nações Unidas (São Paulo-SP).
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