| Foto: Bigstock

Por que temos vontade de beijar uma mulher na boca por horas, engolindo a saliva dela?

CARREGANDO :)

Afinal, o que querem duas pessoas quando se beijam na boca? Essa questão me vinha à mente quando criança. O que faz com que duas pessoas aparentemente queiram devorar uma à outra num beijo em que as salivas se misturam? 

Diretamente ligada a esta questão, uma outra que frequentava minhas indagações filosóficas infantis era: por que os homens chamam mulheres de "gostosas"? Sendo "gostosa" uma expressão usada para comida, por que, afinal, os homens aplicavam às mulheres? 

Publicidade

Comecemos por esta (apesar de não ser a questão que me interessa propriamente). Estou longe de achar que a expressão "gostosa" seja errada ou "objetificante da mulher". Penso justamente o contrário: "gostosa" é um termo perfeito para se aplicar a um certo tipo de mulher, aquelas que nos fazem perder a cabeça. 

Na verdade, o debate sobre a objetificação não me interessa. Afora o fato de que mulheres se sentem de fato gostosas quando gozam ou quando arrasam corações e vidas por aí, o termo "gostosa" é, exatamente, o que descreve a sensação que temos quando estamos diante de mulheres que temos vontade de "devorar sexualmente". 

O verbo "devorar" pode, facilmente, ser substituído por "comer" ou "engolir". Lembro-me bem da primeira vez que entendi o significado de chamar uma mulher de gostosa. E esse entendimento tinha a ver com a vontade de comê-la ou engoli-la. A beleza dela se transmutava em desejo de assimila-la a mim mesmo. 

Todos esses verbos, assim como a expressão "gostosa", nos remetem à ideia de gosto e de alimentação. Mulheres têm gosto e nos alimentam. Para quem as aprecia, esse gosto não é unicamente "físico". 

O gosto de uma mulher é, também, metafísico. Por isso o poder de uma mulher inundar a vida de um homem: ele quer "comer" seu corpo e sua alma. Não é à toa que muitos antropólogos consideram o canibalismo indígena (o real, não o metafórico) um ato sublime e espiritual. 

Publicidade

E aí voltamos à minha primeira indagação filosófica infantil: por que temos vontade de beijar uma mulher na boca por horas a fio, engolindo a saliva dela? 

Claro que há algo relacionado ao "comer" a mulher desejada neste gesto. Ou "comer" qualquer pessoa desejada, obviamente. Não vou perder tempo aqui com questões periféricas como "gênero". Mas, haveria algo de metafísico nisso? 

O filósofo e místico espanhol e mulçumano Ibn Arabi, nascido em Múrcia, Espanha, em 1165, e morto em Damasco, Síria, em 1240, escreveu uma obra (entre outras) dedicado ao amor ("Tratado do Amor") em que discorre sobre a natureza de vários tipos de amor, desde o mais natural, ao mais espiritual e místico. 

Ibn Arabi é conhecido pelo impacto na tradição islâmica sufi e na mística islâmica como um todo. Um daqueles antídotos para quem pensa que o Islamismo seja uma religião de bárbaros. Aliás, o componente místico do Islã é de uma beleza avassaladora. 

Vejamos um trecho específico sobre o beijo escrito pelo místico islâmico espanhol medieval: "Quando dois amantes se beijam intimamente, cada um aspira a saliva do outro, que penetra neles. Quando se beijam e se abraçam, a respiração de um se expande no outro e o hálito assim exalado penetra em ambos ao mesmo tempo". 

Publicidade

Este trecho está na parte do tratado em que ele discorre sobre as relações entre o amor natural e o espiritual. 

A ideia de Ibn Arabi é a de que ao engolir a saliva um do outro, ao respirar o hálito que sai da boca do outro e ao desejar de forma ardente esta mistura "promíscua" de elementos corporais íntimos, os dois amantes desejam estabelecer uma identidade única entre eles. 

Misturar saliva e hálito representa, na análise poética do místico espanhol, essa partilha de intimidade para além de qualquer abstração vazia. 

Quando desejo engolir a saliva de uma mulher ou respirar seu hálito com a minha boca, de forma ardente e apaixonada, estou dizendo a ela que gostaria de ser um com ela. De me fundir com ela. De assimilar a beleza que vejo nela e que me coloca nessa condição de desejar tê-la como parte do meu corpo. Por isso, o espírito em sua saliva me encanta.

Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap.