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O esporte não pode admitir boicote a um adversário por motivos políticos
| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

A Fifa, o Comitê Olímpico Internacional e todas as outras entidades esportivas internacionais enchem o peito para dizer que não aceitam interferência de governos na gestão do dia a dia do esporte. O princípio até faz sentido: preservar a competição esportiva de influências externas, fazer que seus resultados reflitam o máximo possível o desempenho dos atletas. Parece muito o discurso do Barão de Coubertin, o recriador dos Jogos Olímpicos e autor da frase “o importante não é vencer, mas competir. E com dignidade”.

Mas, no mundo real, cartolas adoram se lambuzar no poder de presidentes, primeiros-ministros e monarcas por onde passam. E, quando interesses políticos se chocam com os esportivos, os dirigentes fingem que não veem e os primeiros, muitas vezes, são vencedores. Até que chega o momento em que isso é esfregado na cara do torcedor e não há como fazer vista grossa.

Foi o que ocorreu no último Campeonato Mundial de Judô, realizado em agosto no Japão. O iraniano Saeid Mollaei chegou às semifinais da categoria até 81 quilos, da qual era o campeão mundial. Se chegasse à decisão, seu provável adversário seria o israelense Sagi Muki. E o alarme soou em Teerã.

A Federação Internacional de Judô (IJF) suspendeu o Irã de todas as competições por tempo indeterminado

O Irã, assim como vários países do Oriente Médio, não reconhece o Estado de Israel. E isso se estende ao esporte, com o governo iraniano ordenando que atletas do país não enfrentem israelenses em competição alguma. Já é rotina, sempre resultando no abandono do torneio por parte do atleta iraniano, muitas vezes sem dar uma justificativa. Há dezenas de casos semelhantes, desde etapas do Circuito Mundial de Vôlei de Praia e abertos de tênis até os Jogos Olímpicos, passando por mundiais de esgrima, judô e luta.

Por isso, Mollaei não se surpreendeu quando recebeu mensagem ordenando que não lutasse com o belga Matthias Casse, perdendo a semifinal por WO e evitando o encontro com Muki. O iraniano não obedeceu, mas teve atuação abaixo do esperado e perdeu a luta. A causa do desempenho fraco pode ser falta de foco após a ordem, ou mesmo uma forma de não enfrentar Muki sem ter de passar o vexame de desistir do mundial, mas Mollaei falou abertamente sobre a pressão que recebeu. Pediu ajuda e disse que, depois de suas declarações, temia pela segurança de seus familiares, que ficaram no Irã.

Em setembro, a Federação Internacional de Judô (IJF) suspendeu o Irã de todas as competições por tempo indeterminado. Além disso, a entidade busca uma solução para Mollaei poder competir sem representar um país, tendo como caminho mais provável a Equipe Olímpica de Refugiados.

A solução imediata é boa, mas o movimento olímpico e o esporte em geral precisam criar regras mais claras para isso. No caso de esportes individuais, é fácil separar nação e atleta, bastando colocar os competidores sob uma bandeira neutra ou como atletas independentes. Foi o que ocorreu com os iugoslavos (na época, sérvios, norte-macedônios, montenegrinos e kosovares) nos Jogos Olímpicos de 1992 e o que deve ocorrer com Mollaei, por exemplo. Mas o que fazer com os esportes coletivos, em que equipe e país coincidem? Em situações pontuais, pune-se o país, e atletas inocentes acabam pagando como efeito colateral. Foi o caso da Iugoslávia nos Jogos Olímpicos e na Eurocopa de 1992. No entanto, quando o atrito é permanente, caso de Israel com seus vizinhos, as autoridades preferem acomodar.

Basta pegar um mapa para perceber que Israel fica na Ásia. Essa geografia básica foi respeitada nos esportes por algum tempo, mas, desde a década de 1970, com o aumento das faíscas no Oriente Médio, os israelenses passaram a sofrer boicotes frequentes. Em vez de reforçar a separação entre esporte e política, as diferentes entidades preferiram contrariar os atlas e Google Maps da vida, deslocando Israel para a Europa. É assim no basquete, no vôlei, no handebol e no futebol. Na Fifa, aliás, os israelenses chegaram até a competir pela Oceania por um tempo! Financeiramente, até vale a pena para Israel estar esportivamente na Europa, pois está inserido em competições muito mais importantes e rentáveis. Mas certamente os israelenses teriam muito mais chances de disputar a Copa do Mundo, por exemplo, se estivessem nas eliminatórias de seu continente real – onde estavam em 1970, quando foram à sua única Copa.

São gambiarras políticas que têm efeito nos resultados esportivos. Deslocar um país de continente até é aceitável se há um consenso e por ser uma medida prévia à competição. Mas, quando ela ocorre, entende-se que todos concordaram com suas regras, o que inclui a lista de participantes. Se alguém tiver um problema com isso, tchau. A Federação Internacional de Judô agiu bem no caso da federação iraniana. Que esse exemplo se torne ponto de partida para uma regulamentação padronizada para novos casos desses.

Ubiratan Leal é comentarista dos canais ESPN, colaborador do canal Desimpedidos e dos podcasts Fronteiras Invisíveis do Futebol, feito pela equipe do Xadrez Verbal, e Trivela.

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