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O Frankenstein, o babuíno e o Jabuti: o uso da Inteligência Artificial nos livros
| Foto: Unsplash

Um dos livros finalistas do Prêmio Jabuti 2023, que é o maior prêmio literário brasileiro, foi a obra Frankenstein, uma edição do clássico de 1818. O livro foi editado pelo Clube de Literatura Clássica e concorria na categoria Melhor Ilustração do Ano. Acontece que a própria editora divulgou o livro como o primeiro totalmente ilustrado por Inteligência Artificial (IA), usando a ferramenta Midjourney.

À primeira vista, a capa, em tons de preto e cinza, traz algum desconforto e não se sabe exatamente a razão – o que inclusive traz um sentido interessante a uma obra que trata de um monstro fisicamente desfigurado. Olhos mais treinados detectam características normalmente encontradas neste tipo de imagens geradas por IA, especialmente algum dimorfismo, algumas perdas de detalhes, que depois foram confirmadas pela sua origem. O mesmo se dá com as ilustrações internas.

Ilustradores, escritores, autores e artistas em geral se opuseram à indicação desse livro ao Prêmio, apontando a injustiça, a violação do direito autoral e a falta de criatividade humana merecedora de premiação. Um dos membros do júri, André Dahmer, disse que não conhecia a ferramenta Midjourney e que não sabia que a ilustração tinha sido feita por IA. Acrescentou que o tema deveria ser regulamentado, talvez com a criação de uma categoria própria. A cartunista Laerte, que não participou do comitê julgador, primeiro concordou com a opinião de Dahmer, mas depois disse ter revisado seu posicionamento.

O debate mais importante é sobre o uso integral de uma ferramenta automatizada para produzir uma atividade artística. Isso porque estas ferramentas não são efetivamente uma “inteligência” na acepção correta do termo, já que não são criativas. O que fazem é captar milhares, milhões, bilhões de obras feitas por artistas — seres humanos — e dali tirar traços, formas, cores, estilos, para fazer – a ironia – um Frankenstein criado com estes “pedaços” que flutuam pela internet.

Ocorre que obras que estejam na internet, gratuitas ou não, estão protegidas por direitos autorais, cabendo aos autores “os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou”, inclusive pela indicação de seu nome, como indicam expressamente os artigos 22, 24 e 25 da Lei brasileira dos Direitos Autorais.

Bem, no caso de IA, quem é o autor? A mesma Lei dos Direitos Autorais traz no artigo 11 a definição legal: “Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.” Note-se que pessoas jurídicas estão expressamente excluídas, o que, por extensão, pode-se entender que também se aplica à detentora das ferramentas eletrônicas. Isso não traz grandes debates. Mas, mesmo que assim não fosse, como se viu, estes programas não criam propriamente nada, apenas produzem resultado com base em informações (inclusive visuais) que estão disponíveis na internet. Não há criatividade, não há efetivamente inteligência envolvida.

E há ainda outra questão, que é lateral, mas talvez seja tão importante quanto: quem coloca o prompt de comando (ou seja, as instruções para fazer a imagem) juridicamente não é, necessariamente, considerado como proprietário ou coproprietário do resultado. Os termos de serviço do Midjourney, por exemplo, expressamente dispõem que usuários gratuitos da ferramenta não são possuidores dos resultados para quaisquer fins. Não parece ser o caso da editora do caso Frankenstein, mas é um debate importante para outras situações. Já a Open IA não faz esta distinção, dando o direito ao usuário.

E aqui entra o babuíno do título: o primata Naruto, cuja selfie ficou famosa ao redor do mundo em 2011 quando ele pegou a câmera do fotógrafo David Slater e bateu sozinho a foto. A organização PETA (People for the Ethical Treatment of Animals) moveu uma ação dizendo que o primata tinha direito à indicação como coautor, com o seu nome incluído nos créditos. O fotógrafo, por sua vez, dizia que um animal não possui direitos autorais, já que a lei americana sobre o assunto não faz tal previsão. O mesmo se aplicaria a um elefante que pinta um quadro, por exemplo. No caso específico de Naruto e Slater, o assunto terminou com um acordo, onde 25% dos lucros da imagem são direcionados a entidades que protegem a área natural onde mora o simpático babuíno.

Por outro lado, não se pode dizer que David Slater efetivamente tirou a foto. Embora ele tenha preparado as configurações da câmera (colocando o autofoco, controle de luminosidade etc.) e a colocou de forma a ser pega por Naruto, que foi quem apertou o botão do obturador. Ele fez a preparação, mas não o resultado, embora este seja consequência direta da preparação.

Pode-se até dizer que a preparação da câmera corresponde às instruções (prompt de comando) dadas à ferramenta de IA para preparar a imagem, algo como “faça uma imagem de um dinossauro pilotando um foguete pintado de cor de rosa”. O solicitante não cria efetivamente a imagem, mas dá as condições para que esta seja criada. Seriam coautores, o usuário e a ferramenta artificial? O usuário seria o autor, já que ele teria feito o trabalho intelectual? Ou o autor seria a IA, porque ela teria feito o trabalho sujo de produzir a obra, e o usuário não teria efetivamente produzido o resultado?

Bem, para a lei brasileira atual, como se viu, autor só pode ser a pessoa física – e o mesmo, por óbvio, para o coautor. Da mesma forma, os termos de serviço das ferramentas preveem expressamente que os direitos dos resultados pertencem ao usuário. Mas, o funcionamento das ferramentas atuais apenas usa traços, cores, iluminação etc., de imagens que foram feitas por artistas humanos. Então, o mais correto seria dizer que uma imagem feita por IA seria uma colaboração entre artistas, de número e identidades indetermináveis, ou seja: uma obra coletiva de anônimos.

A solução que o comitê julgador do Prêmio Jabuti adotou foi desclassificar a obra Frankenstein da categoria Melhor Ilustração. Assim, de certa forma, entendeu que não há um autor definido e, portanto, não poderia haver premiação. Hoje, com a tecnologia e a legislação atual, é a decisão mais acertada. Talvez possa ser criada uma categoria particular, já que se trata de um prêmio escolhido por regras próprias, aceitas por julgadores e concorrentes.

Os pesquisadores, inclusive Geoffrey Hinton, um dos criadores do ChatGPT, já dizem que estas ferramentas passarão a efetivamente produzir resultados inéditos, tendo realmente aprendido e não só feito uma compilação de resultados da internet. No momento em que isso acontecer, será preciso rever a legislação e os conceitos para que possam acomodar o novo presente.

Mário Gregório Barz Jr. é especialista em Direito Digital e Compliance, é sócio do Fragata e Antunes Advogados.

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