• Carregando...
 | Robson Vilalba/Thapcom
| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

A legitimidade da Organização Mundial do Comércio (OMC) tem sido colocada em xeque ultimamente. Seu papel central é permitir que seus membros solucionem tensões e conflitos comerciais que decorram de suas relações internacionais. A entidade também visa fazer com que o sistema de comércio seja um instrumento capaz de promover relações comerciais mais justas e sustentáveis, por meio de políticas como disciplinar o uso de subsídios que possam distorcer o comércio, remover barreiras não tarifárias ou o apoio à integração de empresas de pequena escala em cadeias de valor, por meio do comércio global e sua facilitação.

Entretanto, em âmbito internacional, há uma ampla percepção de que o atual sistema comercial tutelado pela OMC se encontra em crise, e isso tem sido o combustível para os questionamentos sobre seu papel, hoje, no mundo. A necessária reformulação das estruturas da OMC é fundamental para a sustentação de um sistema multilateral, com mais legitimidade e que necessariamente potencialize os negócios de comércio exterior em todo o mundo, inclusive no Brasil. Essa reforma passa por três aspectos principais: o sistema de solução de controvérsias, as disposições legais que visam promover o desenvolvimento econômico dos países em desenvolvimento, e a prática de obter o consenso entre seus membros em todas as decisões da organização.

A credibilidade da OMC está sob séria ameaça e isso se reflete especialmente no aumento das tensões comerciais entre as principais economias mundiais

O sistema de solução de controvérsias da OMC, por exemplo, é o único em tratados intergovernamentais que não permite a seus Estados-membros buscar outros mecanismos para resolver disputas comerciais. Não há qualquer flexibilização. E muitos países mostram insatisfação com isso, principalmente os Estados Unidos, particularmente a respeito do órgão de apelação da organização. Entre outras alegações, os norte-americanos questionam o fato de a OMC, em muitos casos, ultrapassar sua autoridade e violar regras do próprio órgão.

O segundo desafio, que encontra maior dificuldade para ser superado, trata das políticas aplicadas pela organização aos países em desenvolvimento e que permitem menos restrições às práticas comerciais destas nações. O grande problema deste tratamento diferenciado é que qualquer país pode se considerar “em desenvolvimento” e estaria automaticamente elegível para os benefícios. Com isso, países de renda média-alta, que venham a se tornar exportadores competitivos, podem reivindicar esse privilégio. É preciso um equilíbrio, pois o atual sistema foi concebido em meados da década de 1960 e para um formato de economia mundial bastante diferente do atual.

Hoje, é preciso identificar e implementar novas políticas que promovam o desenvolvimento econômico em um contexto de cadeias globais de valor, onde há comércio eletrônico e onde startups podem se tornar multinacionais, usando plataformas eletrônicas e explorando tecnologias móveis de informação e comunicação. Essas mudanças, que têm ocorrido na estrutura da produção global, fizeram com que as barreiras comerciais tradicionais se tornassem instrumentos inócuos na tentativa de “proteger” a indústria nacional.

Opinião da Gazeta: A onda protecionista (editorial de 7 de novembro de 2016)

Leia também: Trump vs China: Muito além do aço (artigo de José Roberto Baschiera Junior, publicado em 9 de maio de 2018)

É evidente que algumas das políticas comerciais atuais ainda são relevantes e surtem efeitos, como a escalada de tarifas em grandes mercados de importação, assim como subsídios para a produção agrícola. No entanto, isso ocorre fora das regras da OMC, algo que fere ainda mais a legitimidade da organização e seu atual sistema.

O desafio final é a respeito das práticas de consenso dentro da OMC, que, mesmo não sendo uma regra formal, é regular e está arraigada na cultura dos Estados-membros. Se por um lado o modelo atual garante que as negociações sejam aceitáveis para todos e que nenhum país seja forçado a acatar obrigações que não sejam de seu interesse, essa prática tem se mostrado ineficaz e causadora de impasses. Uma minoria pode bloquear qualquer deliberação, negociação, agenda de reuniões ou proposta.

Dois exemplos recentes ilustram isso muito bem: a atual recusa dos Estados Unidos em aprovar novas nomeações para o órgão de apelação da OMC, e a ação da Índia para impedir a adoção do protocolo que incorporava o Acordo de Facilitação de Comércio à organização, em 2014. O desejo da maioria muitas vezes não é respeitado e interesses individuais acabam prevalecendo sobre os coletivos. É preciso fazer um ajuste que, ao mesmo tempo, proteja os países em desenvolvimento, sem impedir que a decisão majoritária seja aceita nos assuntos mais importantes da entidade.

Abertura comercial já: Abrir reformando e reformar abrindo (artigo de Ubiratan Jorge Iorio, publicado em 5 de novembro de 2018)

Leia também: A guerra comercial entre Estados Unidos e China (editorial de 19 de setembro de 2018)

A credibilidade da OMC está sob séria ameaça e isso se reflete especialmente no aumento das tensões comerciais entre as principais economias mundiais. A reforma de suas estruturas, passando prioritariamente por esses três desafios citados, é fundamental para assegurar a continuidade da relevância da organização como uma plataforma para os Estados-membros governarem conjuntamente suas relações comerciais.

A mudança em curso rumo a uma economia digital interconectada globalmente exige cooperação internacional em uma série de novas áreas políticas. Os acordos comerciais preferenciais não são capazes de preencher as lacunas existentes. Eles oferecem soluções parciais, na melhor das hipóteses, no estabelecimento de regras para gerenciar os fluxos de comércio e investimento. Entretanto, tais acordos dependem de uma base sólida de regras que devem ser fornecidas pela OMC para garantir que eles não sejam ameaçados pela erosão do sistema multilateral de comércio.

André Cruz, formado em Administração e Direito, com MBA em Negócios Internacionais, é gerente de Acordos Comerciais da Thomson Reuters Brasil.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]