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O juiz, o padre e o pecador
| Foto: Pixabay

Após algumas décadas servindo nas igrejas paroquiais ou estudando em universidades e junto de mestres, era corrente que os clérigos medievais do ocidente fossem elevados ao posto de “juízes de almas”. Vocacionados a receber a confissão dos fiéis cristãos, os clérigos juízes deveriam guiar os pecadores pelo doloroso e necessário Sacramento da Penitência, indagá-los sobre os erros e, por fim, puni-los e absolvê-los. Dessa maneira, ainda que familiarizados com as bases do direito romano e com as doutrinas canônicas, os confessores dos séculos 13 e 14 protagonizaram na Península Ibérica o estabelecimento de um processo propriamente jurídico. Apesar dos quase 700 anos que nos separa e das diversas mudanças e adaptações das práticas jurídicas, as lições passadas a tinta por esses homens atravessam o atlântico, foram reescritas por nossos conterrâneos e influenciaram de diversas maneiras a forma como olhamos para nossos juízes e cobramos deles o correto exercício de suas funções.

Voltando atenção aos clérigos ibéricos, o tratadista castelhano Martín Pérez, letrado do início do século 14 sobre o qual pouco sabemos, asseverava em seu pobre Livro das Confissões que os padres de seu reino eram carentes de ciência e de conhecimento das leis divinas e, por essa razão, faltavam com o dever de julgar corretamente as almas dos cristãos. Narrava o autor que os maus juízes se dividiriam entre os que eram “tão avarentos e tão soberbos” com o conhecimento que acabavam por não instruir corretamente outros mais humildes; e os que, ao contrário, por desamor ao conhecimento, “não queriam trabalhar para saber a ciência da verdade” e, assim, viviam contra sua vocação. Aos dois tipos, Pérez recomendava, ao mesmo tempo que caridade e misericórdia, devoção aos conhecimentos da justiça, definida como guardiã da verdade divina e das virtudes espirituais, aspecto lacunar na vida dos juízes que mais amavam as vontades da carne do que o conhecimento virtuoso.

A obra, que circulou largamente entre os reinos ibéricos e foi compilada em português em 1399, buscava, então, não somente ensinar o direito e o processo jurídico a ser empregado na confissão, mas apontar os erros e as falhas cometidos pelos juízes de almas daquele tempo. Ao relembrar os preceitos de Sto. Agostinho, Martín Pérez dizia era conveniente ao juiz espiritual “saber conhecer tudo o que há de julgar”, pois do conhecimento provinha todo o poder e autoridade. Assim, o conhecimento sobre o direito, a justiça e os dogmas cristãos, cuja maestria era esperada das autoridades, respondiam à necessidade direta daqueles povos: garantir a virtude na vida terrena e a eternidade na vida celeste.

Em vista disso, era grave que os clérigos juízes, principais alvos de tais prédicas, fossem acusados de ignorantes e minguados de ciência, pois significava que tinham pouco a oferecer aos paroquianos e serviam de forma medíocre ao reino e a Deus. Entre as maneiras encontradas por Pérez para corrigir os danosos costumes, o tratadista outorga ao próprio pecador o controle das ações de seu juiz. Não obstante o respeito e a obediência que deviam às autoridades que os julgavam, o fiel cujo o “cura não dava conselhos na alma como tinha necessidade” recebia a recomendação para procurar outro juiz que ouvisse seus pecados, menos minguado e que demonstrasse maior virtude em suas ações cotidianas.

O confessor cego, como Martín Pérez definira o mal juiz, praticante dos mesmos atos desvirtuosos ou destituído de ciência, responderia ao pecador que vinha em busca de perdão: “E quem é aquele que não cai nisto?”. Seria, assim, ao invés de parâmetro de valor e honestidade para os homens, complacente com o erro. Ademais, agregariam mais casos ao seu portfólio de pecados os clérigos que por inveja, orgulho ou malícia não dispensassem o pecador para ir se confessar com outro padre, rentando ao fiel obter a iluminação divina por meio de contínuas orações ou reclamar ao prelado superior as falhas de seu juiz.

Em nossos tempos, os juízes de destaque não são os confessores, os pecados não os principais delitos e os julgados não são os fiéis penitentes. Estabelecemos ao longo de nossa história outros tipos sociais, instrumentos, tecnologias e instituições que substituíram o juiz, o padre, e o pecador medieval. Porém, sem a intenção de aferir uma falsa continuidade no tempo, a cobrança que fazemos dos nossos juízes e autoridades se assemelha a atenção que o pecador da Península Ibérica Medieval deveria sustentar perante seu juiz de almas.

Nossa necessidade de garantir a justiça, hoje secular e civil, naquele tempo natural e divina, ainda exige dos oficiais conhecimento e erudição em matéria de direito. Aqueles que não cumprem com as exigências – outrora confessores cegos e minguados de ciência – tendem a colocar em risco os valores prósperos e as verdades que nos trouxeram até aqui. Observar como a necessidade de justiça foi saciada ao longo da história, nos permite compreender o porquê e de que maneira, nos dias de hoje, buscamos vigiar nossos juízes, damos ouvidos aos nossos padres e definimos como serão julgados os pecadores.

Rodolfo Nogueira da Cruz é doutorando em História e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de São Paulo.

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