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O que fazer diante da chocante desigualdade social do Brasil
| Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo

O historiador britânico marxista Eric Hobsbawm, na sua obra célebre Era dos Extremos, publicada em 1994, sobre o "breve século 20 (1914-1991)", descreveu o Brasil com o epíteto de monumento à iniquidade social. Vinte e cinco anos se passaram e o Brasil continua entre as nações mais desiguais do planeta. Recentemente, a Pnad Contínua do IBGE apontou que os 50% dos brasileiros mais pobres têm renda per capita de R$ 413, e que os 5% mais pobres têm rendimento per capita de míseros R$ 51. Esses dados são estarrecedores, quando nos damos conta de que não estamos falando de uma nação africana em guerra, como a Somália, mas do Brasil, uma das potências emergentes do globo e a oitava nação mais rica do planeta. A desigualdade brasileira, embora tenha caído levemente nos anos 2000, voltou a crescer após 2015, em virtude da profunda recessão (2014-2017) e da estagnação (2017-presente) que vêm assolando a nossa economia.

A raiz desta desigualdade brasileira, bem como aquilo que a sustenta e a perpetua, tem um nome só: patrimonialismo. Esse mal foi perfeitamente diagnosticado por Raymundo Faoro no seu clássico Os donos do poder, publicado em 1958. O patrimonialismo tupiniquim é uma herança de Portugal do tempo da colonização e consiste naquilo que, no Estado russo pré-revolucionário, era conhecido como “Dominium”. O Dominium é a confusão entre a coisa pública e a coisa privada, no qual o Estado se constitui numa extensão das propriedades do rei. Essa extensão e confusão, em países de dimensões continentais, como Brasil e Rússia, torna virtualmente impossível a gestão direta de propriedades tão extensas, forçando o governante a adotar o sistema feudal da “vassalagem”, no sentido de que o rei “outorga” várias áreas do Estado a diversos vassalos, desde que estes mantenham a fidelidade ao rei (ou ao governante de então). A colonização acabou, o Estado brasileiro foi fundado em 1822, em 1889 foi proclamada a República, mas o vício do patrimonialismo, que trazemos das priscas eras coloniais, persiste. Enquanto não nos livrarmos de vez do patrimonialismo e instalarmos uma república que honre o seu nome, permaneceremos desiguais, a despeito de pequenos avanços e de uma infinidade de políticas sociais.

Enquanto não nos livrarmos de vez do patrimonialismo e instalarmos uma república que honre o seu nome, permaneceremos desiguais

Qual a razão do fracasso das políticas sociais no Brasil em combater a desigualdade? É simples: o Estado brasileiro, sem extinguir o patrimonialismo, consegue tão somente enxugar gelo com as políticas sociais. Enquanto desde os anos 1990, os governos vêm valorizando paulatinamente o salário mínimo e implantando diversas políticas sociais, estes mesmos governos vêm favorecendo “os amigos do rei”, os  “vassalos”, ou seja, as pessoas e os grupos com capacidade de se articular e conseguir o seu “naco” do orçamento: banqueiros, empreiteiras, empresários de todos os ramos, políticos, redes de televisão, igrejas e mesmo alguns (não a maioria, é bom frisar) servidores públicos e seus familiares, que recebem aposentadorias e pensões na casa dos R$ 20 mil ou R$ 30 mil num país que tem R$ 998 como salário mínimo.

É preciso dizer: o Estado brasileiro, parasitado por inumeráveis grupos a defender cada um o seu quinhão, é o produtor e o reprodutor destas desigualdades extremas, chocantes, aberrantes e vergonhosas que assolam o nosso país. Enquanto o Estado brasileiro não for libertado do patrimonialismo, não se libertar dos sanguessugas que o vampirizam (e, por meio dele, a nação), a desigualdade extrema persistirá. Esta é uma tradição antiga do “conciliacionismo” brasileiro. Um sinal disso é que líderes populistas de diferentes épocas, como Getúlio Vargas e Lula, foram ambos conhecidos como “pais dos pobres” e “mães dos ricos”.

Há no Brasil um equívoco sobre o pensamento e sobre a tradição liberal, que se insurge contra este patrimonialismo parasitário. O liberalismo autêntico não é inimigo do social nem de políticas sociais; este é um equívoco repetido ad nauseam no Brasil sem nenhum fundamento na tradição liberal que se inicia na Inglaterra com a Magna Carta. O autêntico liberalismo é inimigo não das pessoas que necessitam de legítima e necessária assistência social do poder público, mas sim das castas que parasitam, vampirizam e sugam em proveito próprio (tal como os nobres da Europa de séculos atrás) o Estado brasileiro e, por meio dele, o povo que trabalha e paga impostos (regressivos e indiretos, em sua grande maioria).

Liberalismo tem de ser liberalismo para valer. Aqui se prega um “pseudoliberalismo”, que é “somente para os outros”, justamente para aqueles mais necessitados, enquanto que, para as elites parasitárias, persistem os "favores do rei”. Isso claramente é desonestidade intelectual. Um bom exemplo disso é o que aconteceu no BNDES. É vergonhoso que governos passados tenham captado recursos no mercado financeiro para capitalizar o BNDES e, por meio dele, emprestar a juros subsidiados a empresários amigos, transferindo o ônus do serviço da dívida a toda a nação brasileira. Isso é escandaloso, ainda mais vindo de quem se diz “social-democrata”, pois isto foi um Robin Hood às avessas, tirando dos pobres para dar aos ricos. Ou nos livramos do patrimonialismo, ou permaneceremos desiguais. Não há alternativa.

Dimitri Martins é mestre em Administração, especialista em Gestão Pública é analista de Políticas Sociais no Ministério da Economia.

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