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É possível e até provável que o clássico livro de Hannah Arendt, "As Origens do Totalitarismo", tenha de ser reescrito em futuro próximo para incluir novas manifestações do poder total do Estado sobre os indivíduos. E ironicamente, os principais ingredientes para essa nova forma de totalitarismo estão exatamente nas sociedades formalmente mais democráticas que conhecemos, como os Estados Unidos e a Inglaterra por exemplo.

A palavra "total" não está necessariamente ligada a eventos ou fatores negativos: alguém pode experimentar, por exemplo, um estado de satisfação ou felicidade total, o que aliás deve ser uma maravilha. Mas "total" no sentido sociopolítico significa a ocupação integral dos espaços individuais dos membros de uma sociedade pelo poder sufocante do Estado. E é exatamente isso que está acontecendo nas sociedades tecnologicamente sofisticadas, mesmo que politicamente pluralistas. Para não ficar na conversa vazia, você sabia, paciente leitor, que em Londres qualquer pessoa que transite em uma rua é fotografada dezenas de vezes por dia? A tecnologia mais moderna permite, então, que computadores supervelozes e potentes façam o diabo com a foto, comparando-a com álbuns de fotos da polícia e dos serviços de inteligência de vários lugares do mundo para identificar possíveis riscos de segurança. O mesmo acontece nos aeroportos americanos, em que sistemas de vigilância fazem exatamente a mesma coisa, insuflando ar nas roupas dos passageiros para descobrir se há resquícios de pólvora e de drogas – o que me faz rezar todos os dias para que o tintureiro do hotel em que me hospedo não seja chegado a determinados tipos de substâncias.

Às vezes, esses sistemas prestam serviços importantíssimos na detecção de crimes : cidades que têm sistemas de monitoramento eletrônico das vias públicas viram seus níveis de criminalidade diminuir graças a esse tipo de vigilância. Esse é o lado bom da tecnologia aplicada à segurança da populaçao. Mas há o lado maligno: os governantes que controlam a máquina do Estado não são abstrações; ao contrário, são seres humanos de todos os tipos, muitos dos quais imbuídos dos mais nobres princípios, enquanto que outros muitos são inspirados pelos sentimentos mais baixos e pelos propósitos mais subalternos. Daí, para que esses últimos utilizem as informações coletadas e diligentemente organizadas pelos moderníssimos sistemas de informação a respeito de uma multidão de pessoas, de modo a favorecer seus interesses ou perseguir aqueles que possam prejudicá-los é um passo muito pequeno (e um salto na direção errada para a humanidade).

Não estou falando de informações criminais, mas até de coisas aparentemente inocentes: quanto vale, na mão de um governante inescrupuloso, uma informação financeira de um cartão de crédito que pode lever à descoberta das preferências sexuais de seus opositores? Que aconteceria com a carreira de um desafeto se o acesso às suas informações médicas revelasse um passado de consultas a especialistas em HIV, que podem ser obtidas manuseando eletronicamente as fichas de um plano de saúde? E o acesso à sua correspondência eletrônica, hoje totalmente devassada por sistemas de vigilância como "Carnivore" e outros semelhantes?

Em nome da segurança dos cidadãos, os governantes acumulam cada vez mais informações e conseqüentemente mais poder sobre eles. E as instituições acabam fragilizadas por esse acúmulo de poder. Nos Estados Unidos, que se auto-intitulam em seu hino, a "terra dos livres, a pátria dos bravos", centenas de pessoas estão presas em Guantánamo há anos sem ser acusadas formalmente de nada, sem ter direito a consultar advogados ou mesmo ver suas famílias. Por quê? Porque "talvez" pertençam a uma rede terrorista. Ninguém sabe mais o que os governantes sabem a seu respeito; e pior, ninguém está livre, agora ou no futuro, do mau uso dessas informações.

Essa mistura de tecnologia ultraeficiente com poder ilimitado pode simplesmente destruir o que chamamos de sociedade livre. Pois afinal, uma sociedade livre é, entre outras coisas, aquela em que cada um pode guardar para si alguns aspectos de sua vida pregressa; em que aqueles que erraram podem se redimir de seus erros ou mesmo sepultá-los para sempre e buscar uma vida nova. Uma sociedade que, no momento em que o indivíduo nasce começaa a acumular informações a respeito dele para que os governantes o controlem mais facilmente não pode ser chamada de democrática, muito menos de livre. E por fim, sempre existe o risco da estupidez humana como verificou o brasileiro Charles, o pobre eletricista que encontrou a morte na mão dos supercapacitados integrantes da polícia de Sua Majestade, a "infalível" Scotland Yard, que, com toda a certeza dada pela mais moderna tecnologia, o confundiram com um terrorista.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.

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