A guerra civil que convulsiona a Síria, a ultrapassar o entorno geopolítico do milenar país, atinge a Europa e ocupa insidiosamente a macroagenda internacional, sem poupar as atormentadas relações russo-americanas. Nessa escalada, a crise que deveria ser apenas novo capítulo da velha pendenga pan-islâmica converge para cenário de gravidade sem precedentes, bem além dos 200 mil mortos e 10 milhões de refugiados deixados pelos quatro anos de conflito.

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Agora não são apenas sunitas e xiitas que se opõem de forma virulenta, em conflagração multitudinária e de atores diversos, para compor mosaico de desacertos alastrados para o resto do mundo. Em meio à crise, os recentes bombardeios promovidos por França e Rússia, a par daqueles norte-americanos, sem qualquer coordenação de aliança militar, projetam a irracionalidade jihadista para as superpotências, como se a barbárie se impusesse, a sepultar a negociação e a diplomacia. Tomando em conta que Obama e Putin reuniram-se há pouco, em alardeado diálogo sincero na ONU, é assustador saber que tenha sido um oficial russo a acercar-se da embaixada americana em Bagdá para avisar que raides de Sukhoi se iniciavam sobre a Síria. Quando no mesmo teatro de guerra superpotências se dizem aliadas, porém apontam suas armas para alvos desconexos, a história fatalmente se acelera.

Conformando verdadeiro melting pot de interesses obscuros, no qual a permanência de Assad no poder separa macrointeresses em cotejo – e com a Europa desunida acerca do tema –, a crise síria põe em risco a segurança coletiva, com soluções pacíficas perdendo espaço para o uso da força, na recorrente diplomacia da bomba, fracassada no Afeganistão, no Iraque e na Líbia.

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A crise síria põe em risco a segurança coletiva, com soluções pacíficas perdendo espaço para o uso da força

O panorama confuso da crise síria que contamina a sociedade internacional, de difícil percepção para o Ocidente, contempla apenas três partes, porém infinitos participantes. Com mais de meia centena de países envolvidos com ímpeto belicoso, o espaço para a solução pacífica se estrangula. Constrói-se, de fato, em desastrada gestão multilateral, dilema imponderável, a misturar ingredientes explosivos, como fundamentalismos e minorias irredentas, marés de refugiados a inundar a Europa e seus fantasmas, a par do perene Oriente Médio de mundos inconciliáveis. E, como se não bastasse, a crise faz reacender a oposição entre Moscou e Washington, em notório revival da Guerra Fria.

Quanto ao Estado Islâmico, que corta gargantas para provocar a reação desastrada de países ocidentais, é provável que seu poder se dissipe com rapidez, fulminado por reação tão violenta quanto os ultrajes espetaculosos que perpetra. Porém, ficará em aberto o dilema da sucessão de poder na Síria em escombros, como pomo da discórdia servido com ardil à mesa do Conselho de Segurança da ONU.

No plano simbológico e da guerra midiática, o ataque a Palmira, a cidade que representa o passado grandioso da Síria greco-romana, não é apenas ação militar a caminho da capital do país. Mais do que a destruição gratuita de relíquias e de exaltação da intolerância, a invocação de lugares míticos faz lembrar o que Sarajevo e Danzig representaram na eclosão das duas guerras mundiais. Ainda no campo dos símbolos, se na cultura ocidental a ideia do caminho de Damasco faz evocar a percepção do arrependimento virtuoso, infelizmente não é o que se tem agora, em meio à luta rumo à capital síria, no bojo do que poderá ser a primeira crise verdadeiramente global da pós-modernidade.

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Jorge Fontoura é analista de política externa e de relações exteriores.