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 | Pedro Serápio/Arquivo Gazeta do Povo
| Foto: Pedro Serápio/Arquivo Gazeta do Povo

O Judiciário vive um momento delicado. Situações nas quais antes se afirmava com tranquilidade o entendimento legal hoje passaram a ser imprevisíveis. Não raro tem-se visto tribunais que, diante de uma mesma situação jurídica, decidem de forma completamente distinta. E a falta de consistência nas decisões judiciais brasileiras pulveriza a insegurança, causa medo. Ao não se ter certeza do que é correto fazer, nada se faz.

Especialmente quanto aos torneios de pôquer, continuamos a ver decisões que, como se parados no tempo, os magistrados se dedicam a verificar se seria ou não jogo de azar. Ao menos quanto a isso se percebe avanço: inúmeros julgados concordam ser o pôquer um jogo de habilidade – finalmente!

Mas e a modalidade “cash-game”? Nem sequer se cogita sua legalidade. As decisões judiciais passam distantes do tema e não se aprofundam na discussão, limitando-se a afirmar ser proibido, mesmo sem se dizer exatamente qual seria o fundamento para tanto.

O pôquer cash-game, diferentemente dos torneiros, é a modalidade em que os participantes jogam a dinheiro real. As fichas correspondem ao valor das notas, podendo ser adquiridas novas a qualquer momento do jogo. Além disso, o jogador pode entrar e sair da mesa na hora em que desejar, com o valor de dinheiro que estiver em sua mão. Talvez pela própria dinâmica envolvida e pelo preconceito sobre o tema, que há pouquíssimo tempo deixou de ser considerado jogo de azar, ainda nem sequer cogita o Judiciário a possibilidade de essa modalidade ser, também, lícita.

O fundamento atual da proibição do pôquer, nessa modalidade, se dá através da Lei de Contravenções Penais (artigo 50 do Decreto-Lei 3.688/41). Entende-se ser ilícito quem estabelece, explora ou participa de jogos de azar. Ocorre que a lei, quando fala em jogos de azar, não se limita àqueles cuja vitória dependa da sorte, acrescendo, também, as apostas em jogos, mesmo sendo eles de pura habilidade. São considerados jogos de azar, portanto, 1. o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; 2. as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; e 3. as apostas sobre qualquer outra competição esportiva. Neste último caso residiria a proibição do pôquer cash-game. Nas palavras do desembargador Luiz Cézar Madeiros, “proibida é a aposta e não o pôquer, porque este, como visto, não se amolda ao conceito de jogo de azar” (MS 2011.043164-9).

O pôquer cash-game, diferentemente dos torneiros, é a modalidade em que os participantes jogam a dinheiro real

Remanesce saber, agora, o que se entende juridicamente por “aposta”.

Em que pese, em um primeiro momento, a proibição de “apostas sobre qualquer outra competição esportiva” soar extremamente abrangente, fazendo crer que seria proibida qualquer conduta genérica que popularmente se convencionou como aposta (tal como uma corrida apostada entre amigos), ela tem como referência o item anterior, que trata sobre competições de cavalos. A leitura que se deve fazer, portanto, é de que são proibidas as apostas sobre corridas de cavalos (em locais inapropriados), bem como sobre qualquer outra competição esportiva semelhante ao parâmetro adotado; se está a proibir, igualmente, quem aposta sobre competições esportivas semelhantes ao modelo praticado nas corridas de cavalos.

Em competições de corridas de cavalos, como notoriamente se sabe, o apostador não participa do evento competitivo. Limita-se a emitir uma opinião sobre quem se sagrará vencedor, concordando em, caso erre em seu palpite, ceder a quantia de dinheiro àquele que teve êxito.

Assim, deve ser entendido que, quando o terceiro item afirma ser proibida a aposta “sobre qualquer outra competição esportiva”, necessariamente se está falando de caso em que o apostador, em que consiga fazer uma análise fundamentalista de quem provavelmente vencerá, não participa da competição e não influencia no resultado. Aposta-se na expectativa de que seu palpite esteja certo. Proibida será, portanto, a conduta do sujeito que aposta sobre competição esportiva cujos participantes são terceiros.

Merece destaque a palavra utilizada pela própria norma: “sobre”. Aposta-se “sobre” qualquer outra competição esportiva, não “em” qualquer outra competição esportiva. Seguindo conceito do Dicionário Aurélio, a palavra “sobre” significa “18. Acerca de; relativamente a; em relação a; a respeito de”. Assim, a descrição normativa, ao escolher a palavra “sobre” em vez de qualquer outra, vem a corroborar com a ideia de distanciamento entre o apostador e a competição esportiva em cujo resultado se pretende opinar.

Assim, resta a indagação: o cash-game configura aposta? Entendo que não. Ao contrário do que costumeiramente se diz, não há aposta nessa modalidade, mas jogo valendo dinheiro. E essa distinção tem absoluta relevância no cenário jurídico.

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Pontualmente, quando duas ou mais pessoas competem entre si em determinado jogo de habilidade, mesmo que concordando em ceder dinheiro ao vencedor (por uma vez ou sucessivas vezes), não se trata de contrato de aposta, mas contrato de jogo, ao qual não há, absolutamente, vedação legal. Arnaldo Rizzardo, ex-desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, faz brilhante distinção entre o contrato de jogo e de aposta. Afirma ele, em entrevista, que “pelo contrato de jogo, há participação dos contratantes, (...) Já na aposta, os disputantes não participam ou influem no ganho ou na perda” . Em suma, o simples fato de se jogar, mesmo que a dinheiro, é tolerado, como ensina César Fiuza em Direito civil: curso completo.

O jogo, no ordenamento jurídico brasileiro, pode ser dividido em três categorias: i. o permitido, aquele que é endossado pelo poder público e/ou expressamente autorizado em normas legais; ii. o proibido, sendo a participação ou exploração de jogo de azar, as apostas em corrida de cavalos e qualquer outro esporte; e o iii. tolerado, aquele que, justamente, não está autorizado expressamente pela lei brasileira, mas não se amolda às proibições constantes na Lei de Contravenções Penais.

Significa dizer, portanto, que toda modalidade de jogo cuja proibição não esteja expressamente proibida por lei deve ser considera lícita. Por exemplo, a corrida apostada entre amigos para ver quem chega primeiro, a rifa feita por uma comissão de formatura ou o carteado a dinheiro entre membros da família. Em tal modalidade de jogo, há apenas a tolerância do ordenamento jurídico, como afirmam Pablo Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho em seu Novo curso de direito civil. Em suma, tudo que não está juridicamente proibido está juridicamente permitido, como já ensinava A.L. Machado Neto. Portanto, o pôquer, mesmo na modalidade cash-game, deve ser considerado lícito.

Mas, se deve ser considerado lícito, por que não há entendimento judicial nesse sentido?

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Não há, infelizmente, avaliação mais aprofundada na área criminal, eis que se trata de contravenção penal, sujeita às medidas despenalizadoras (previstas na Lei 9.099/95) que permitem a realização de transação penal; em termos simples, possibilita à pessoa acusada de tal prática arquivar o caso independentemente de avaliação judicial, com o benefício de não gerar qualquer tipo de antecedente criminal desde que não tenha se valido desse benefício nos últimos cinco anos. Ou seja, a pessoa, ameaçada em ser processada criminalmente, sabendo que não há mínima segurança jurídica sobre o tema, cede em suas convicções de não estar cometendo nada ilícito e opta pela segura transação.

Somente se vê o tribunal discutindo sobre o tema quando particulares, com o objetivo de promover a abertura de uma casa de jogos, provocam o Judiciário quando veem negado seu alvará. Infelizmente, somente assim se procedeu em casos de negativas para torneiros de pôquer, nunca em relação ao pôquer cash-game.

Vale noticiar uma tentativa isolada de particular que, com o objetivo de promover uma aplicação on-line que permitiria que pessoas jogassem a dinheiro, e temendo uma indevida repressão da autoridade policial, impetrou mandado de segurança para ver garantido seu direito. Nesse caso específico, o Tribunal do Rio de Janeiro não enfrentou a matéria sob a alegação de que, como a pessoa jurídica ainda não havia iniciado suas atividades, não haveria risco a direito líquido e certo passível de discussão judicial. Vale destacar que, nesse isolado caso, não foram abordados os mesmos argumentos aqui colocados.

O que se precisa, portanto, é pulverizar aos praticantes do esporte que tal modalidade deve ser considerada lícita, para, com o tempo, sempre que surgirem dúvidas quanto a isso, se recorra a uma acertada fundamentação para provocar os tribunais. Somente assim será possível mudar o equivocado entendimento.

Felipe Américo Moraes é advogado especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial.
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