• Carregando...
Os 40 anos do fim de um genocídio e a justiça tardia
| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

Há quase um ano, em 16 de novembro de 2018, as Câmaras Extraordinárias das Cortes do Camboja (ECCC, na sigla em inglês) – um tribunal misto criado em cooperação entre o Camboja e as Nações Unidas, localizado na capital Phnom Penh – condenaram dois dirigentes do Khmer Vermelho, acusados do mais hediondo dos crimes, o genocídio. Em 28 de março deste ano, o ECCC publicou o relatório completo do julgamento, com 2.259 páginas na versão em inglês, detalhando os crimes cometidos. No entanto, a corte provavelmente não abrirá mais nenhum caso contra outros membros do brutal regime comandado por Pol Pot, e que governou o Camboja entre 1975 e 1979.

Os dois dirigentes condenados por genocídio eram gente graudíssima. Nuon Chea foi o vice de Pol Pot, ocupando o segundo posto no Partido Comunista do Kampuchea por 36 anos, desde 1962 até a morte de Pol Pot, em 1998. Khieu Samphan foi chefe de Estado do regime do Khmer Vermelho entre 1976 e 1979.

A conclusão da corte, de que houve dois casos de genocídio sob o governo do Khmer Vermelho, também é de grande importância. Vários estudiosos vinham argumentando que o regime de Pol Pot havia cometido outros tipos de crimes, mas não genocídio. Em vez disso, o ECCC afirmou que dois grupos étnicos minoritários do Camboja – os vietnamitas e os muçulmanos chams – sofreram genocídio nas mãos do regime. O fato de Nuon Chea ter morrido em 4 de agosto, aos 93 anos, enquanto apelava da condenação, não deve afetar o veredito, baseado em ampla documentação.

Todos os lados, os cambojanos e a comunidade internacional, têm culpa nestas décadas de atraso e negação

Os dois assessores próximos de Pol Pot, aliás, não foram condenados apenas por genocídio; em 2014, ambos já haviam sido sentenciados por crimes contra a humanidade, e em 2016 a decisão do ECCC foi mantida, após a análise de um recurso. Além deles, Duch, o antigo comandante da principal prisão secreta do regime, conhecida como S-21, está cumprindo pena de prisão perpétua depois de também ter sido condenado por crimes contra a humanidade em 2010. Essas três condenações demoraram décadas para vir, mas finalmente ofereceram algum senso de justiça às vítimas do regime.

Nos últimos anos, outros três dirigentes do Khmer Vermelho foram presos. Dois deles, Ieng Sary e Ieng Thirith, ambos ministros importantes no regime de Pol Pot, também enfrentaram processos ou a perspectiva de um processo, mas não viveram o bastante para receber suas sentenças. Ieng Sary, vice-primeiro-ministro entre 1975 e 1979, morreu na prisão em 2013 durante seu julgamento por crimes contra a humanidade. Ele também havia sido acusado de genocídio, crime pelo qual enfrentaria um segundo julgamento. Sua esposa, Ieng Thirith, também estava na cadeia, mas seu processo não seguiu em frente porque o tribunal a considerou mentalmente debilitada e incapaz de comparecer diante da corte. Ela morreu em 2015. Por fim, o principal comandante militar do Khmer Vermelho, Mok, foi preso em 1999 e morreu na cadeia em 2006, enquanto aguardava pela denúncia. Do primeiro escalão do Khmer Vermelho, apenas o próprio Pol Pot e outro dirigente, Ke Pauk, escaparam da prisão. Ambos morreram antes que o ECCC fosse criado.

O Khmer Vermelho, é verdade, não ficou impune por todo esse tempo. Em 1979 e durante os anos 80, dezenas de milhares – talvez 40 mil – de membros menos graduados do grupo passaram algum tempo em prisões cambojanas ou centros de detenção. Eles não tinham recebido nenhuma sentença de prisão perpétua, e nem mesmo tinham sido formalmente julgados e condenados por algum tribunal. Mesmo assim, em muitos casos esses prisioneiros cumpriram penas que duraram vários anos. Enquanto viajava pelo Camboja nos anos 80, soube de muitos casos de oficiais e soldados do Khmer Vermelho que tinham sido capturados, presos ou detidos, por exemplo, em campos de reeducação. Portanto, quando os críticos do ECCC ou do atual governo cambojano falam de impunidade, estão se referindo ao que ocorre neste momento, quando Hun Sen está evitando novos processos neste ano de 2019, o que é verdadeiro e lamentável. Todos esses processos deveriam seguir em frente, mesmo que já não sejam dirigidos aos principais nomes, e sim a autoridades de segundo escalão do regime.

Também é triste que não haja mais discussão sobre como, de 1975 a 1992, a China, o Ocidente e seus aliados apoiaram o Khmer Vermelho em sua pretensão de continuar representando o Camboja na ONU – ou seja, permitindo que um regime genocida falasse ao mundo em nome de suas vítimas. Pelos 13 anos decorridos desde que o Khmer Vermelho foi derrubado do poder, quem ocupou a cadeira do Camboja nas Nações Unidas continuou a ser um embaixador escolhido pelo grupo. A bandeira dos genocidas tremulava sobre Nova York enquanto as forças de Pol Pot já não governavam, estando restritas à fronteira com a Tailândia e tentando retomar o poder no Camboja.

Essa coalizão que garantiu apoio internacional ao Khmer Vermelho por tanto tempo é o motivo pelo qual Pol Pot jamais enfrentou um julgamento, até morrer enquanto dormia, em 1998. A Austrália sugeriu a possibilidade de um tribunal internacional em 1986 e conseguiu apoio de duas nações do Sudeste Asiático, Indonésia e Malásia. Mas os Estados Unidos criticaram a ideia e se recusaram a apoiar qualquer processo contra o Khmer Vermelho até 1994; as Nações Unidas, por sua vez, só foram planejar um tribunal em 1999.

Àquela altura, o governo de Hun Sen já tinha derrotado militarmente os últimos resquícios do Khmer Vermelho e forçado os líderes sobreviventes a se renderem, em 1999. Só então eles finalmente enfrentaram o julgamento do ECCC, um tribunal híbrido cuja criação foi negociada entre o governo cambojano e a ONU – e, mesmo assim, a oposição cambojana bloqueou o acordo por um ano no Legislativo do país.

Agora, 40 anos depois do fim do genocídio do Khmer Vermelho, o governo de Hun Sen tenta bloquear processos contra vários membros importantes do segundo e terceiro escalões do regime genocida. Justiça atrasada é justiça negada. Todos os lados, os cambojanos e a comunidade internacional, têm culpa nestas décadas de atraso e negação.

Pelo menos, para as muitas vítimas dos líderes máximos do Khmer Vermelho, alguma justiça tardou, mas chegou.

Ben Kiernan, professor de História na Universidade Yale, é fundador e diretor do Programa sobre o Genocídio Cambojano na mesma instituição e autor de How Pol Pot Came to Power, The Pol Pot Regime, Le Génocide au Cambodge e Genocide and Resistance in Southeast Asia. Tradução: Marcio Antonio Campos.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]