‘Bem, acho que vou apertar sua mão, mas tenho apenas uma coisa a lhe dizer: você deve sair da Ucrânia." A franqueza um tanto brutal do primeiro-ministro canadense, Stephen Harper, não destoou da atitude geral dos líderes das nações desenvolvidas diante do presidente russo na cúpula do G20. O frio congelante que envolveu Vladimir Putin na ensolarada Brisbane foi amenizado apenas pelo silêncio cúmplice de alguns países emergentes, entre os quais o Brasil. Dilma Rousseff não pronunciou a palavra "Ucrânia". O Itamaraty nunca soltou uma mera nota diplomática de condenação da anexação da Crimeia ou da interferência russa no Leste ucraniano. É que a política externa brasileira opera segundo os estímulos de uma miragem chamada Brics.

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A principal fonte acadêmica da miragem é o sociólogo neomarxista Immanuel Wallerstein, um antigo defensor da tese do declínio dos EUA. Numa nota escrita em 2013, Wallerstein afirmou que "se definimos o anti-imperialismo como redução do poder dos EUA, então os Brics representam uma força anti-imperialista". O sociólogo não pensa, efetivamente, nesses termos primitivos, como atesta o restante do texto. Mas seus epígonos brasileiros, que não estão acostumados com nuances, interpretam os Brics como, precisamente, "uma força anti-imperialista". Dito de outro modo, substituem a realidade pelo seu próprio desejo.

A teoria oficiosa do governo brasileiro sobre os Brics está expressa no Enem, que se transformou em algo como uma cartilha doutrinária do lulopetismo. Numa das questões do exame mais recente, a alternativa originalmente formulada para ser a correta define o grupo como "uma frente de desalinhamento político aos polos dominantes do sistema-mundo". O gabarito oficial, apresentado apenas quatro dias após a aplicação da prova, abdicou prudentemente da intenção original, desviando-se para outra alternativa, selecionada pelos cursinhos como correta. Contudo, a "frente de desalinhamento" aparece em inúmeras declarações de operadores da política externa brasileira.

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No Blog do Planalto, publicado pela Presidência da República, o assessor para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, enfatizou a "presença política dos Brics na esfera internacional" e classificou o grupo como uma "aliança de polos" voltada para a "construção de um mundo multipolar". As declarações, que coincidiram com a realização da VI Cúpula dos Brics, em Fortaleza, em julho, eram um convite ao diálogo entre os Brics e "esse polo sul-americano, ou um polo latino-americano e caribenho". A miragem "anti-imperialista" não poderia ser exposta de modo mais nítido. Se fosse candidato ao ingresso nas universidades federais, Garcia teria marcado a alternativa finalmente considerada incorreta na prova do Enem.

O assessor especial não está só. Há pouco, o representante do Brasil no FMI, Paulo Nogueira Batista Jr., também bateu na tecla do "multilateralismo", comparando a criação do Banco dos Brics à do FMI e do Banco Mundial, em 1944. Sem se importar com ordens de grandeza, declarou simplesmente que a reunião de cúpula do grupo, na capital cearense, "ficou para a história como Bretton Woods". Tal como Garcia, Batista usa o termo "multilateralismo" como metáfora anódina para tudo que pareça conduzir à "redução do poder dos EUA".

A miragem "anti-imperialista" desorienta há uma década a política externa brasileira. De fato, o sistema internacional tende à pluripolaridade, enquanto verifica-se um declínio, lento e relativo, da influência de Washington. Nada disso, porém, sustenta a aposta terceiro-mundista em alianças estratégicas Sul-Sul orientadas pelo antiamericanismo. Os "polos" de Garcia não existem. Apesar dos esforços do chavismo, a América Latina e o Caribe não formaram um "polo" geopolítico e, contrariando as esperanças ideológicas do lulopetismo, os Brics não se comportam como uma "aliança de polos".

Os Brics são coisa diferente para cada um de seus integrantes. A China, esteio do grupo, utiliza-o como mais uma ferramenta, entre tantas, de difusão de sua influência econômica e diplomática. A Índia, que é uma aliada estratégica dos EUA e, como reconhece Wallerstein, "sente a necessidade de se proteger do poder da China", utiliza-o para conservar uma variedade de opções diplomáticas. A Rússia, em conflito geopolítico cada vez mais agudo com os EUA e a União Europeia, utiliza-o para fugir ao espectro do isolamento. China, Índia e Rússia medem o grupo pela régua de seus próprios interesses nacionais. O Brasil, pelo contrário, prefere pesá-lo na balança da ideologia, mesmo às custas de seus interesses e valores.

A tensão entre interesses e valores, de um lado, e ideologia, de outro, adquiriu tons dramáticos desde o início da agressão russa contra a Ucrânia. A China e a Índia, antigas rivais estratégicas, não poderiam condenar os atos de Moscou sem empurrar a Rússia para os braços do inimigo regional. O Brasil, por outro lado, que não enfrenta constrangimentos similares, tinha o dever de condenar a anexação da Crimeia e a intervenção russa no Leste ucraniano. No artigo 4 de nossa Constituição, o dever está expresso em "princípios" que regem as relações internacionais do país: a "autodeterminação dos povos" e a "não intervenção". O sólido, pesado silêncio do governo brasileiro diante da violação aberta desses princípios equivale ao sacrifício de interesses e valores nacionais no altar de uma miragem ideológica.

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O Brasil não precisa, nem deveria, abandonar os Brics em represália à agressão de Moscou na Ucrânia. Entretanto, o silêncio cúmplice tem um preço elevado, que aumentará na razão direta da extensão da crise ucraniana. Pagamos o custo da duplicidade pela erosão de nossa credibilidade internacional. Já não podemos falar em direitos humanos sem provocar risos irônicos. Logo mais, não poderemos falar em autodeterminação e não intervenção.

Demétrio Magnoli é sociólogo.

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