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Eles voltaram a ocupar as primeiras páginas. E não apenas, aqui, na reta final da disputa eleitoral. Subiram ao palco para comandar o espetáculo político há relativamente pouco tempo: 108 anos. No dia seguinte à publicação da mais famosa manchete de todos os tempos ("J’Accuse", 13 de janeiro de 1898), o mesmo jornal parisiense ("L’Aurore") publicava o primeiro manifesto de professores, cientistas, escritores e artistas em defesa de uma causa política, no caso a denúncia contra o anti-semitismo e a defesa do capitão Alfred Dreyfus.

Entravam formalmente em cena os intelectuais, embora mais de um século antes, sem o mesmo alarde e sob o nome de filósofos, Rousseau, Voltaire, Diderot entre outros, investiram com galhardia contra a intolerância, o despotismo e se transformaram em símbolos de uma nova era da humanidade: o Iluminismo e o Esclarecimento.

Günter Grass, 78 anos, estátua viva do novo idealismo alemão, referência moral de uma nação que conseguiu encarar suas abomináveis culpas e estabelecer novos paradigmas de dignidade coletiva, admitiu há poucas semanas, numa entrevista para promover o lançamento do seu livro de memórias, que aos 17 anos foi membro da famigerada SS, a tropa de elite do hitlerismo.

Nossa mídia tratou linearmente do Caso Grass, acostumada a noticiar guerras e calamidades, calibrada para a falsa objetividade dos dados e das estatísticas. Difícil dimensionar uma catástrofe no plano espiritual, num país que em 1919 adotou o nome de República de Weimar como homenagem à cidade onde viveram e morreram os poetas nacionais Goethe e Schiller.

O ídolo caiu do pedestal, este será mais um final de verão que entrará para a história da Alemanha. O país está arrasado pela tardia confissão e também pela suspeita de que a revelação foi um golpe para promover as vendas do livro de memórias. Num grupo humano onde as subjetividades ainda contam tanto, o novo rufar do tambor de Grass, está funcionando como uma catarse. Surda e dolorosa.

Aqui, ao contrário, endeusamos os heróis sem caráter, os macunaímas espertos e vivaldinos. Nossos luminares são consagrados postumamente, em surtos, incensados ou castigados pelas respectivas trupes e tribos numa ótica partidária estreita, oportunista e tardia.

Grass aqui não "repercutiu", para usar um verbo do jargão midiático e da respectiva escala de valores que, aliás, rege a vida nacional. A questão da culpa e do arrependimento não costuma merecer muita atenção em nossas paragens. A culpa não é dos trópicos, nem do determinismo geográfico, é escolha mesmo. A ética de Spinoza só vai para os jornais quando coincide com os slogans eleitorais.

Ainda não chegamos à discussão proposta por Jean-Paul Sartre em 1948 com a sua peça anticomunista "As mãos sujas" ("Les Mains Sales"), expressão da perplexidade dos intelectuais diante da realpolitik e do pragmatismo da disputa pelo poder. Aqui não calou a metáfora das mãos sujas, mãos sujas de sangue, sangue verdadeiro, sangue humano, derramado em nome da "pureza revolucionária".

O pífio e reles debate propiciado pelo encontro do candidato Lula da Silva com os intelectuais que apóiam o PT e realizado na casa do menestrel-ministro Gilberto Gil ficou relegado a um primarismo que, por um triz, não resvalou no aviltante "rouba, mas faz".

Alguns intelectuais mencionaram as mãos, mas sem qualquer conotação trágica, sujas pelos favores oficiais, caixa 2, propinas e mensalões, porém facilmente tornadas imaculadas com uma simples demissão, indiciamento ou mesmo cassação. As mãos dos nossos atores políticos são apenas extensões do corpo e nunca como extensões da consciência. Por isso, sujá-las ou não sujá-las signifique tão pouco.

Günter Grass passou uma grande parte da sua vida convivendo com uma mentira. Esta é uma tragédia pessoal e uma vergonha nacional. A Alemanha não condenou o seu mais famoso escritor vivo, também não o justifica. A Alemanha chora por ele.

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