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Transposição Rio São Francisco
Trecho de transposição do Rio São Francisco.| Foto: TV Brasil/Agência Brasil

Encontra-se no estado do Rio Grande do Norte a chave para se entender a complexidade política do projeto da transposição do Rio São Francisco e é daí que vem a razão do meu envolvimento como norte-rio-grandense e estudioso por mais de 20 anos desse tema. Desvendar o erro histórico da transposição passa por entender o papel de protagonismo do RN desde os primórdios do projeto moderno de Itamar/FHC até os dias atuais da construção do Ramal do Apodi de Bolsonaro/Lula.

No governo Itamar Franco, Aluísio Alves, ex-governador do RN, lançou as bases para o atual projeto da transposição; no governo seguinte de Fernado Henrique Cardoso, com Fernando Bezerra no ministério, foi elaborado o Projeto Básico da Transposição do Rio São Francisco que se reproduziu nas obras contratadas por Lula e concluídas por Bolsonaro tendo à frente Rogério Marinho, também do RN, que aproveitou para desengavetar o Projeto dos Ramais do Salgado e do Apodi, licitando as obras da mesma forma que fora proposto ainda no governo FHC.

O resgate do antigo e visionário projeto de transposição do CE foi uma estratégia para justificar politicamente o projeto atual, apresentando-o como um sonho de D. Pedro II de 150 anos que, finalmente, estaria sendo realizado por Lula. Puro marketing, que esconde o objetivo principal de justificar a megaobra para irrigar em larga escala áreas restritas a 5% do Semiárido, com resultado ineficaz, muito diferente do projeto de segurança hídrica de cunho regional vendido pelo governo Lula à nação.

A transposição sempre foi historicamente um projeto modesto de segurança hídrica para o sul do Ceará. Afinal, há 150 anos ainda não se fazia irrigação em larga escala no Nordeste e muito menos o grande projeto de recursos hídricos do Ceará tinha sido iniciado. Em cem anos foi desenvolvido no CE o maior programa de açudagem do mundo, com mais de 17 bilhões de capacidade de armazenamento distribuída em todo no interior do estado, com destaque para as barragens de Orós (2,1 bilhões de m³) e do Castanhão (6,7 bilhões de m³), 3ª e 1ªdas maiores barragens do NE Setentrional.

Porém, na moderna concepção de FHC, a transposição passou a ser a maior infraestrutura hídrica do país, com grandes canais, aquedutos, túneis e sistemas de bombeamento de grandes portes – Eixo Norte com 99 m³/s e o Eixo Leste 28 m³/s – que só se justificariam, no caso do Eixo Norte, para atender grandes demandas de agricultura irrigada.

E é aí que se chega ao vínculo especial da transposição do Rio São Francisco com o RN, que é onde se encontram grandes áreas contínuas de terrenos favoráveis à irrigação no NE setentrional, destacando-se dezenas de milhares de ha de terras férteis na bacia do Rio Apodi, onde se desenvolveuum dos maiores polos de agricultura irrigada de frutas para exportaçõesno NE.

Então, afinal qual é o grande problema disso tudo? É o vício de origem do Projeto da Transposição que a matéria da Gazeta do Povo, Rivalidade sobre transposição do São Francisco é briga por autoria de erro histórico”, apontou e que a experiência prática de gestão da obra está comprovando: a inviabilidade econômica do projeto, nunca analisada tecnicamente. Trata-se de um absurdo que foi cometido pelos autores do projeto e passou despercebido no licenciamento ambiental epor todos os órgãos de controle do Estado Brasileiro até o momento atual. A outra questão é a insustentabilidade hídrica do Rio São Francisco para atender as enormes demandas de irrigação do projeto original que foi comprovada no primeiro Plano da Bacia do Rio São Francisco. Portanto, feita essa constatação, no governo Lula, o Projeto de Transposição passou a ser considerado com um projeto regional de segurança hídrica tendo como base uma vazão de 1/4 da vazão original. Mesmo assim, o projeto de FHC foi mantido na íntegra, mesmo com as vazões garantidas bem menores, das oito bombas previstas para o Eixo Norte, apenas duas foram instaladas.

No caso do Eixo Norte, apenas os trechos I e II foram contratados no primeiro governo Lula e concluídos por Bolsonaro, que iniciou as obras dos dois últimos trechos que correspondem aos Ramais do Salgado e do Apodi. Lula, de pronto, abraçou integralmente o projeto dos Ramais do Salgado e Apodi sem nenhum reparo e logo veio atestar o porte faraônico das obras do túnel de Major Sales na chegada do Ramal do Apodi no RN: com mais de 6m de largura, 6,3 km de comprimento e superdimensionado para uma vazão de 40 m³/s inexistente. Dado que a vazão efetiva que deverá passar pelo Major Sales deverá ser uma parcela ainda não definida de menos de 4,0m³/s previsto pela ANA para serem distribuídos nas bacias do Piranhas-Açu e Apodi na PB e no RN.

Aliás, tudo relacionado com o projeto do Ramal do Apodi é escandaloso: concebido por FHC, engavetado por Lula, contratado por Bolsonaro e agora abraçado na íntegra por Lula sem nenhum reparo. Destaca-se o vício de origem do licenciamento ambiental tendencioso, que nesse caso se torna de gravidade muito maior pela inexistência de licenciamento ambiental específico exigido pela Lei para obras de ampliação do porte e da natureza das licitadas para os ramais do Salgado e do Apodi que foram contratadas sem as devidas licenças ambientais prévia e de instalação, fato esse reconhecido por despacho da Secretaria de Segurança Hídrica do MDR em resposta ao MPF/RN com respeito a denúncia da irregularidade no licenciamento ambiental do citado projeto.

Por conta da pressa em se agilizar as obras do Ramal do Apodi, o MDR apoiou-se indevidamente no licenciamento ambiental do PISF, como um todo, concluído em 2014 – o Relatório de Impacto Ambiental do projeto é de julho de 2004. Sabe-se que, nesse caso, passados mais de 6 anos, todas as licenças ambientais que incluíssem os ramais do Salgado e Apodi estariam vencidas; mesmo assim, as obras foram licitadas e contratadas.

Tudo isso seria menos trágico se não envolvesse o destino de 200 mil pessoas em 17 cidades na área de influência direta do Ramal do Apodi no RNque, que, para não atrapalhar o andamento político do projeto, tiveram de conviver durante os vários anos da maior seca da história com o colapso total do sistema público de abastecimento de água. Elas foram impedidas do acesso as água da barragem de Santa Cruz do Apodi – maior barragem da Bacia do Rio Apodi e segunda maior do RN com capacidade armazenamento de 600 milhões de m³.

Não adianta procurar outra explicação: é a velha indústria das secas agindo em toda a sua plenitude. Atua como uma doença do Estado brasileiro, uma espécie de parasita que habita entre nós, com vida própria, a serviço de interesses não democráticos. Qualquer esperança de mudança só viria através de um verdadeiro estadista na Presidência da República, capaz de libertar os órgãos de controle do Estado brasileiro, hoje atrofiados propositalmente, para exercerem na plenitude suas atribuições constitucionais.

João Abner Guimarães Júnior é professor aposentado da UFRN, doutor em Hidráulica e Saneamento.

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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