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PEC da Imunidade e a ruptura do espírito republicano da Constituição

Como votou cada deputado na aprovação da PEC da Imunidade
Câmara aprovou PEC da Imunidade em primeiro turno por 353 votos favoráveis e 134 contrários. Veja como votou cada deputado. (Foto: Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados)

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Tramita no Congresso a chamada “PEC da Blindagem” ou “PEC da Imunidade” proposta que reacende um dos debates mais delicados da democracia brasileira: o alcance do foro privilegiado e os limites da imunidade parlamentar. A iniciativa, ao alterar dispositivos da Constituição Federal, amplia o rol de autoridades com prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal (STF) e cria novas barreiras para a prisão e o processamento de parlamentares.

O texto da Constituição é claro. O artigo 102 estabelece que cabe ao STF processar e julgar, nas infrações penais comuns, apenas as mais altas autoridades da República: o presidente e o vice-presidente, os membros do Congresso, os ministros da Corte e o procurador-geral da República. A lógica sempre foi a de restringir o foro a situações em que o exercício da função institucional pudesse ser comprometido. Nos últimos anos, inclusive, a interpretação do Supremo caminhou no sentido de limitar o alcance dessa prerrogativa, restringindo-a a crimes cometidos durante o mandato e relacionados ao exercício da função. O movimento foi visto como um freio à impunidade que historicamente marcou a elite política.

A aprovação da PEC da Imunidade reforça a percepção de que a lei se aplica seletivamente, alimentando o sentimento de descrença na política representativa

A PEC da Imunidade, no entanto, inverte esse curso. Além de incluir os presidentes nacionais de partidos políticos com representação na Câmara no rol de autoridades com foro privilegiado — um grupo que exerce influência decisiva no sistema político, mas que não detém mandato popular —, a proposta reforça amarras institucionais que tornam ainda mais difícil a responsabilização penal de parlamentares.

Entre os pontos mais controversos estão a exigência de licença prévia da Casa legislativa para que um parlamentar seja processado criminalmente, a deliberação em votação secreta em até 90 dias por maioria absoluta, a suspensão da prescrição caso a licença seja negada, prorrogando o escudo de proteção enquanto durar o mandato, e a necessidade de decisão da Casa em até 24 horas para validar a prisão em flagrante.

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Não é coincidência que a PEC da Imunidade surja em meio a um ambiente de polarização e desgaste da relação entre Legislativo e Judiciário. Em um momento em que ex-presidentes, governadores e líderes partidários enfrentam condenações ou investigações, a blindagem surge como resposta corporativa. O discurso oficial é o da proteção contra perseguições judiciais. Mas é impossível dissociar a proposta do cálculo político imediato: reduzir a vulnerabilidade de atores centrais do Congresso e dos partidos às decisões do Supremo, em um cenário de crescente judicialização da política.

Aprovada, a PEC da Imunidade representa uma ruptura em relação ao espírito republicano da Constituição Federal de 1988. Se o princípio consagrado no artigo 5º garante que “todos são iguais perante a lei”, a ampliação do foro e a exigência de licença parlamentar para processar membros do Congresso produzem o efeito oposto: consolidam um regime de desigualdade jurídica entre cidadãos comuns e políticos profissionais. O impacto simbólico também é profundo.

Importante ressaltar que em um país marcado por crises de confiança nas instituições, a aprovação da PEC da Imunidade reforça a percepção de que a lei se aplica seletivamente, alimentando o sentimento de descrença na política representativa.

O Congresso tem, diante de si, uma escolha que transcende conveniências momentâneas. Pode optar por reforçar um sistema de responsabilização capaz de recuperar a confiança social ou pode recuar para a lógica da autoproteção, ampliando o fosso entre representantes e representados. Assim, o Legislativo dirá se a Constituição continua sendo o pacto que limita privilégios e assegura direitos ou se se transformará em um instrumento para blindar aqueles que deveriam ser os primeiros a prestar contas à sociedade.

Marcelo Aith, advogado criminalista, doutorando Estado de Derecho y Gobernanza Global pela Universidad de Salamanca, mestre em Direito Penal, é Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico e especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidad de Salamanca.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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