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Detalhe da “Alegoria do bom e do mau governo”, de Ambrogio Lorenzetti.
Detalhe da “Alegoria do bom e do mau governo”, de Ambrogio Lorenzetti.| Foto: Reprodução

Conta-se que certo imperador da China medieval, ao sair com seu exército para debelar um grupo de revoltosos numa província afastada, jurou diante das tropas que acabaria completamente com aqueles seus inimigos. Chegando lá, tratou-os com tal brandura e amabilidade que eles desistiram da revolta, deixando as forças imperiais ociosas e indignadas. Alguns generais, então, censuraram o imperador, interrogando se era daquela forma, anistiando os rebeldes, que ele julgava estar cumprindo o seu juramento inicial de destruir totalmente os seus inimigos. A isso, o imperador respondeu: “Eu cumpri o que prometi. Não derramei sangue, mas onde estão os meus inimigos agora?”

Esta pequena história ilustra uma aplicação sábia de algumas das virtudes mais importantes que o líder político deve cultivar: a magnanimidade, que é aquela grandeza de alma que só os espíritos realmente nobres possuem, a prudência no uso da força e da autoridade, a clemência com os que erram e a paciência diante das situações desafiadoras.

O sentido da virtude

“Virtude” vem do latim virtus, que remete a “força moral”, “valor”, “hombridade”, e é derivada justamente da palavra vir, que significa “homem”, “varão”. Disto, concluímos que o homem de personalidade madura é necessariamente virtuoso; ele imprimiu no seu caráter traços habituais de justiça e autodomínio, é senhor de si, seus impulsos não sobrepujam os valores do seu espírito – por isso não se deixa levar por paixões desordenadas como a ira, a cobiça, a soberba ou a comodidade.

Os gregos antigos falavam da virtude como areté, que significa excelência, inclinação para a perfeição, e era entendida como uma condição para a vida boa e feliz. A areté denotava o cumprimento do verdadeiro propósito ao qual todo ser humano é destinado nesta vida: desenvolver os seus melhores potenciais, seus melhores atributos e tornar-se uma pessoa excelente. Não se tratava apenas de ser competente e eficiente no trabalho ou disciplinado na vida pessoal, mas um bom homem, uma boa mulher, no sentido pleno da palavra “bondade”.

O filósofo Platão e o livro bíblico da Sabedoria (Sb 7,8) elencaram quatro virtudes cardeais: a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança. A primeira é confundida por muitos com uma mera “cautela” que poderia, inclusive, acabar resvalando em covardia, mas não é essa a verdadeira prudência. Ela, na realidade, é aquela que serve de eixo para todas as outras virtudes na medida em que dispõe a inteligência para discernir o bem em qualquer situação e optar pelos justos e melhores meios de alcançá-lo. “Ela é origem, raiz, mãe, padrão, fio de prumo, piloto, forma primordial de todas as virtudes morais”, diz Josef Pieper.

A justiça, por sua vez, é a vontade firme de assegurar aos outros o que lhes é devido e não tirar deles o que por direito lhes pertence. A fortaleza consiste na resistência corajosa perante as dificuldades e numa impávida constância na busca pelo bem. Por fim, a temperança evoca o domínio da reta razão e da vontade equilibrada sobre os instintos, moderando o nosso desejo dos bens e prazeres terrenos. Ora, se notamos que tais virtudes são importantes e úteis para o homem comum, com muito mais razão reconhecemos que os estadistas, legisladores, juízes e lideranças em geral devem se deixar conduzir por elas.

Descobrimos em Aristóteles que as virtudes não são adquiridas de uma hora para outra, nem pela mera aceitação mental, e tampouco mediante uma simples decisão de momento. Elas se formam em nós por meio de bons hábitos cultivados por um longo período de tempo com determinação e perseverança. Há um processo de educação dos próprios hábitos que precisa ser empreendido, já que a nossa natural inclinação é, geralmente, para o vício. Não há outro modo de adquirir a virtude. E todo candidato político ou magistrado que não esteja disposto a passar por esse processo certamente não está pronto para governar, legislar ou julgar.

O homem de personalidade madura é necessariamente virtuoso; ele imprimiu no seu caráter traços habituais de justiça e autodomínio, é senhor de si, seus impulsos não sobrepujam os valores do seu espírito

Nos tempos da cavalaria produziam-se os chamados “espelhos de príncipes”: manuscritos de formação moral geralmente redigidos por padres e destinados a imbuir nos príncipes e nobres em geral, desde a juventude, um amor pelo procedimento reto, benévolo e virtuoso, com lições destinadas a prepará-los para o justo exercício do poder.

Também as artes visuais, como a pintura e a escultura, foram empregadas com este tipo de finalidade político-pedagógica. Exemplar, neste sentido, é a Alegoria do bom e do mau governo, um afresco pintado em Siena na primeira metade do século 14 por Ambrogio Lorenzetti. Nele, vemos o bom governante assistido pelos anjos da caridade, da fé e da esperança e rodeado pelas figuras alegóricas da prudência, da temperança, da justiça (assistida pela sabedoria), da fortaleza, da magnanimidade e da paz. Doutra parte, o mau soberano é representado com feições diabólicas e aparece assessorado pela soberba e suas filhas: a crueldade, a traição, a avareza, a vanglória, a maldade, o furor, a divisão e a guerra.

No seu opúsculo De Regno, ou Carta ao Rei de Chipre, São Tomás de Aquino faz a distinção entre “reis” e “tiranos”, e recorda que “cumpre ao rei procurar o bem da multidão”. Ele não deve usar o poder, portanto, para servir a si mesmo, sobrecarregando os súditos com impostos ou abusando da sua autoridade sobre eles. Ao contrário, o poder lhe foi dado para servir ao seu povo, protegê-lo das ameaças internas e externas, socorrê-lo em suas necessidades mais urgentes, propiciar-lhe os meios de desenvolvimento pessoal e coletivo; enfim, ajudá-lo a construir uma sociedade sã, próspera e virtuosa. Em suma, o soberano deve servir ao bem comum, em tudo aquilo que este conceito abarca.

Vícios do mau político

Ser fiel à vocação para o serviço público exige, certamente, um alto grau de generosidade e desprendimento, pois o poder sempre traz consigo a tentação de usá-lo para fins escusos. A lisura no uso dos bens públicos deveria ser um pré-requisito para o exercício de qualquer função política. A Lei da Ficha Limpa, teoricamente, deveria cumprir essa função de filtragem, tornando inelegível qualquer político condenado por corrupção. Mas já vimos que ela não funciona quando o corrupto condenado em questão tem o favor dos que “podem mais” ou as graças da suprema corte jurídica.

De fato, para se engajar na política e não se deixar corromper é preciso coragem, integridade e amor à verdade. O político que mente uma, duas, três vezes acostuma-se a esse vício e sua língua logo se torna alérgica à verdade. “A opção pela verdade deve ser refeita diariamente, entre as hesitações e dúvidas que constituem o preço da dignidade humana”, defendia Olavo de Carvalho. Mas há autores políticos de referência que, em nome da “governabilidade” ou do poder como um fim em si mesmo, pregaram justamente o engano e a fraude nas questões de governo – vícios totalmente opostos à formação do bom político.

Nicolau Maquiavel, famoso pensador político, escreveu uma obra no século 16 chamada O Príncipe. Nela, o autor aparta o exercício da política das normas da moralidade, como se a política fosse isenta da ética e independente do reto agir. O que Maquiavel se presta a ensinar ali são “máximas de gangsterismo público e privado”, nas palavras de Leo Strauss.  Apesar disso, ela se tornaria amplamente difundida como referência para gerações de políticos modernos.

Para se engajar na política e não se deixar corromper é preciso coragem, integridade e amor à verdade. O político que mente uma, duas, três vezes acostuma-se a esse vício e sua língua logo se torna alérgica à verdade

Com o seu revolucionário conceito de virtù, Maquiavel distorceu o significado da virtude e operou uma completa inversão das lições encontradas nos “espelhos de príncipes” medievais: o príncipe dotado de virtù agora deveria ser capaz de conquistar o poder, centralizá-lo e mantê-lo por todos os meios, ainda que desonestos e violentos, estabelecendo, assim, objetivos bem menos dignos para a atividade política.

A própria Bíblia traz vários contraexemplos interessantes que servem de exortação ao político que quer de fato servir ao bem comum e resistir às tentações da injustiça. Encontramos nela, por exemplo, o caso do rei Acab, que ambicionava as terras onde estavam a vinha do lavrador Nabot e, com a ajuda da rainha Jezabel, tramou para que Nabot fosse morto a fim de se apoderar de suas terras. Há também o caso do rei Davi, que isolou o soldado Urias na linha de frente da batalha contra os amonitas para eliminá-lo e ficar com sua mulher, Betsabá.

A desonestidade e as várias formas de injustiça, contudo, não são os únicos defeitos contrários à virtude do político e que o afastam do autêntico espírito de serviço ao bem comum. O filósofo Alasdair MacIntyre, autor de Depois da Virtude e um dos mais argutos críticos da ética contemporânea divorciada da ética das virtudes, chama a atenção para o problema do foco na eficiência burocrático-administrativa que supervaloriza resultados de gestão e desconsidera valores mais fundamentais, como a dignidade, a moral e os bens imateriais do homem.

Igualmente problemática é a postura daquele que só se importa com o desempenho da economia, como se esta pudesse subsistir incólume à degradação geral da cultura e da educação, como se fosse possível haver prosperidade em meio ao esgarçamento das famílias e da sociedade. Ou seja, um político pode ser altamente “eficiente” e honesto, mas, ainda assim, um agente nocivo para o corpo social.

As ideologias e o partidarismo cego, tanto quanto a mentira dita por interesses pecuniários ou sede de poder, contribuem para a perversão da política e desvirtuam igualmente a conduta do homem público. Este precisa se comprometer desde o começo, portanto, com uma visão equânime e sem juízos enviesados. Por isso, em sua bela carta-testamento dirigida ao seu filho, o rei São Luís IX precavia o futuro soberano da França contra os desvios de propósito e de discernimento: “Guarda o teu coração compassivo para com os pobres, infelizes e aflitos, e quando puderes, auxilia-os e consola-os... Em relação a teus súditos, sê justo até o extremo da justiça, sem te desviares nem para a direita nem para a esquerda... Procura com empenho que todos os teus súditos sejam protegidos pela justiça e pela paz”.

Humildade, prontidão, coerência de vida

Também a humildade é uma qualidade que precisa acompanhar o político que queira servir com verdadeiro espírito público. Conta-se que o imperador romano Marco Aurélio, alcunhado “o filósofo”, mantinha perto de si um servo cuja função era lhe dizer sempre aos ouvidos, sobretudo quando o imperador era louvado pelos outros: “És apenas um homem, és apenas um homem!”

Leo Strauss também recorda que “a filosofia grega e a Bíblia concordam em atribuir o lugar mais alto entre as virtudes não à coragem ou virilidade, mas à justiça. E, por justiça, ambas entendem, primeiramente, a obediência à lei [natural]. [...] E a obediência a uma lei deste tipo é mais que a obediência ordinária; é humildade”.

Um poderoso auxílio no cultivo da humildade é a recordação da própria finitude. Uma vez, certo rei foi a um ourives e lhe pediu que gravasse na sua coroa uma frase que fosse consoladora e desoladora ao mesmo tempo, que o deixasse feliz, mas também triste. E o ourives escreveu: “Tudo passa”.

O homem público deve ser coerente. Deve partilhar dos sacrifícios pátrios que, em nome do bem comum, ele julgar necessário impor aos outros

Faz bem ao estadista estar ciente da sua transitoriedade, do caráter efêmero da sua autoridade e da sua própria vida. Por isso, ele precisa governar não somente para a sua própria geração, mas também para as gerações futuras, e se lembrar que um dia terá de responder a um onisciente Juiz por cada um dos seus atos de governo. “Lembra-te que és pó”, ou “Memento mori”, diziam os antigos filósofos e monges.

Pensar nisso incute em qualquer homem um maior senso de responsabilidade, um maior apreço pela sensatez. Isócrates postulava que o governante deve ser sábio, pois a sabedoria o afasta da “mediocridade” e previne muitos deslizes, sendo que “convém mais ao governante desenvolver as faculdades da alma do que ao atleta fortificar o seu corpo”.

O primeiro-ministro britânico Winston Churchill, ele próprio um grande estadista, tinha uma grande admiração pelo marechal francês Ferdinand Foch, que foi comandante-chefe das forças aliadas na Primeira Guerra Mundial e professor da École Supérieure Militaire. Referia-se a ele com grande respeito, destacando a sua perspicácia em antever que a paz obtida pelo Tratado de Versalhes, que impôs duros revezes à Alemanha ao fim da Primeira Guerra, duraria somente 20 anos. O marechal Foch era conhecido por sua serena determinação, prontidão e visão estratégica. Sua personalidade conjugava uma capacidade invulgar de decisão assertiva com aquela serenidade reflexiva que os líderes devem praticar para não meter os pés pelas mãos.

As ideologias e o partidarismo cego, tanto quanto a mentira dita por interesses pecuniários ou sede de poder, contribuem para a perversão da política e desvirtuam igualmente a conduta do homem público

Por fim, o homem público deve ser coerente. Deve partilhar dos sacrifícios pátrios que, em nome do bem comum, ele julgar necessário impor aos outros. Se corta salários, também deve cortar parte do seu. Se proíbe eventos sociais e aglomerações numa pandemia, não deve ser o hipócrita que prega que outros fiquem em casa enquanto ele continua frequentando suas festinhas VIP. Além disso, sua vida pessoal deve ser compatível com as causas e valores que ele defende. Um candidato deve ser um bom pai de família antes de falar em defender a família contra os assaltos do progressismo. Se o seu discurso enfatiza o papel da educação, veja-se antes o quanto ele se importa realmente com a formação dos jovens e se tem papel ativo, ao menos, na educação dos próprios filhos.

O iluminista Rousseau escreveu sobre educação e acabou se tornando uma referência para muitos pedagogos, mas o que poucos contam é que ele próprio abandonou os filhos que teve na “roda dos enjeitados” e nada fez pela educação deles. Da mesma forma, Eleonora Menicucci foi ministra do governo Dilma na Secretaria para as Mulheres, um cargo que implica em dar apoio a um dos maiores dons que as mulheres podem receber: a maternidade. Porém, tinha no seu currículo a mácula de ser uma aborteira profissional treinada na Colômbia e ligada a facções radicais feministas e marxistas, o que logo a tornou alvo de questionamentos sobre a sua idoneidade para a pasta.

Antes de querer ocupar um cargo de poder, portanto, o cidadão precisa ter tido um passado idôneo e uma reputação compatível com o cargo almejado. Precisa ter sido provado (e saído vitorioso) nas tentações e adversidades da vida. Precisa ter se firmado como um pilar seguro para a sua família e comunidade: alguém em quem as pessoas podem confiar e com quem possam contar. Precisa, enfim, ter ciência das responsabilidades que a missão política traz consigo.

Resumo da ópera: a atividade política virtuosa é o reflexo de uma alma generosa e bem ordenada, de uma personalidade forte que mira a excelência humana, constrói uma vida bem vivida e transborda os seus talentos e virtudes como serviço aos outros na esfera pública, não por desejo de vanglória, mas por genuíno amor ao próximo.

Valdemar Bernardo Jorge é professor, advogado, mestre em Direito Econômico e Social, e secretário de Planejamento e Projetos Estruturantes do estado do Paraná.

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