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Por que chamar adversários políticos de fascistas não faz sentido

(Foto: Chris Boese/Unsplash)

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O termo “fascista” tem sido usado hoje de forma indiscriminada, o que prejudica a compreensão do termo em suas dimensões históricas e políticas, e torna necessário compreender de fato seu significado. O fascismo é um movimento político e filosófico que foi instaurado como regime na Itália por Benito Mussolini a partir de 1922, após a chamada Marcha sobre Roma. O termo “fascismo” tem origem na palavra latina fascio, uma referência ao fasces lictoris, um símbolo da Roma Antiga. O fasces era um feixe de varas amarrado em torno de um machado, carregado pelos lictores, guardas que acompanhavam os magistrados romanos. Esse símbolo representava poder, autoridade e unidade: as varas, individualmente fracas, tornavam-se fortes quando unidas, refletindo a ideia de que a força da nação dependia da união sob um governo centralizado e autoritário.

O surgimento do fascismo italiano, cujo governo foi caracterizado por essa centralização e autoritarismo, está diretamente relacionado ao contexto pós-Primeira Guerra Mundial (1914–1918). O Tratado de Versalhes (1919) havia prometido à Itália determinados territórios, mas o país recebeu menos do que esperava, gerando um sentimento de frustração e insatisfação na população.

Lamentavelmente, o que vemos nos dias atuais, especialmente no Brasil, é que termos políticos como fascismo e outros são frequentemente empregados sem rigor histórico, simplesmente para atacar adversários políticos ou expressar discordâncias ideológicas

O cenário político italiano da época era marcado por intensos debates ideológicos, principalmente entre socialistas e conservadores. Mussolini iniciou sua carreira política em um núcleo socialista, sendo favorável à entrada da Itália na guerra, o que o afastou do partido. Diante da instabilidade econômica, do medo do avanço do socialismo e da crise política, cresceu o apelo por um discurso ultranacionalista e apelativo que prometia restaurar a grandeza da pátria.

Em setembro de 1919, surge o Fasci di Combattimento, movimento fundado em Milão por Mussolini. Entre suas propostas iniciais estavam elementos do socialismo-sindical, como a reforma agrária, o sufrágio feminino e o apoio às lutas operárias. No entanto, o movimento também contava com milícias armadas, como os Squadristi (camisas negras), que praticavam violência contra opositores políticos.

Entre 1919 e 1920, o fortalecimento dos movimentos de esquerda levou a elite industrial e latifundiária italiana a se aproximar do fascismo, enxergando nele uma força de contenção ao socialismo. Em 1921, foi fundado o Partido Nacional Fascista. Com o apoio das elites, o partido passou a abandonar gradualmente suas propostas sociais e adotar uma orientação autoritária e nacionalista mais radical.

Em outubro de 1922, os fascistas marcharam em direção a Roma para pressionar o rei Vitor Emanuel III a nomear Mussolini como primeiro-ministro. O rei cedeu à pressão, e Mussolini assumiu o poder. A partir de 1925, o regime tornou-se abertamente totalitário: partidos de oposição foram proibidos, a imprensa foi censurada e a polícia secreta foi oficializada como instrumento de repressão política. E assim, o regime fascista foi instaurado na Itália, com o objetivo principal de expandir as terras italianas, de forma que tal fator garantia uma melhor economia e maior centralização italiana.

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Com o tempo, a ideologia fascista foi se caracterizando, de modo que foi possível aos historiadores, como Robert Paxton, na obra Anatomia do Fascismo, encontrar os principais elementos fundamentais: historicidade econômica do período entre guerras; o ultranacionalismo italiano; o totalitarismo autoritário; o culto à personalidade do líder; a negação do individualismo liberal e da economia capitalista de livre mercado; o repúdio à democracia parlamentar; a propaganda e do uso sistemático da violência como instrumentos de legitimação do poder

A principal característica do Fascismo, sem dúvida, é sua visão do Estado como o mais elevado vínculo da sociedade humana, do qual todas as demais relações sociais são apenas partes dependentes e subservientes. O fascismo exalta o Estado como entidade suprema e busca o controle total da sociedade, promovendo a homogeneização cultural e ideológica. Como declarou Mussolini em 1932: “(...) O Estado, como concebido e concretizado pelo Fascismo, é uma entidade ética e espiritual que assegura a organização política, jurídica e econômica da nação, uma organização que da sua origem e do seu crescimento, é uma manifestação do espírito”. E também declarou sua célebre frase: “Tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado”.

A partir do estudo histórico da prática e da ideologia fascista na Itália, os historiadores são capazes de identificar possíveis aproximações políticas da contemporaneidade com os contextos econômicos e culturais e/ou filosofias próximas ao fascismo italiano do século XX. No entanto, por outro lado, existem problemas de uso da terminologia “fascista” na política atual – especificamente a brasileira – fundamentadas em imprecisão histórica e no uso do termo como adjetivo político. Tal prática dificulta a análise histórica. O resultado, como declarou é que a “(...) palavra fascismo é hoje usada de maneira tão indiscriminada que perdeu qualquer significado preciso”.

O historiador italiano Emilio Gentile, professor aposentado da Universidade de Roma Sapienza, especialista em estudos históricos sobre o fascismo, em entrevista para o Estado de São Paulo no ano de 2020, também fez uma observação pertinente sobre o uso indiscriminado do termo fascismo: “Acredito que se faz confusão entre o termo fascismo para se referir a qualquer movimento de extrema direita racista, nacionalista e antissemita com aquilo que foi o fascismo histórico, um regime totalitário nacionalista, racista e antissemita, mas com características próprias ligadas a experiências da Itália, Alemanha e outros movimentos de extrema direita que se inspiravam no fascismo do período entre a 1.ª Guerra (1914-1918) e a 2.ª Guerra (1939-1945). [...] Hoje [2020] não existem movimentos que desejem instaurar um regime totalitário com um partido armado e um programa de guerra imperialista. Essa é a característica fundamental do fascismo histórico”.

Lamentavelmente, o que vemos nos dias atuais, especialmente no Brasil, é que termos políticos como fascismo e outros são frequentemente empregados sem rigor histórico, simplesmente para atacar adversários políticos ou expressar discordâncias ideológicas. Casos assim se tornaram comuns com o passar do tempo, independente do “lado” político.

No ano de 2016, Guilherme Boulos (PSOL) acusou o então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, de ser “fascista” devido às políticas de segurança pública implementadas por Moraes em São Paulo. Em setembro de 2022, Ciro Gomes (PDT) afirmou que o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) promovia formas políticas de fascismo, referindo-se a um “fascismo de esquerda” liderado pelo Partido dos Trabalhadores. Em 2021, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chamou Jair Bolsonaro de “fascista” e o ex-juiz Sergio Moro de “neofascista”, para se referir às suas posições políticas conservadoras.

Esses usos distorcidos acabam esvaziando o real significado desses conceitos, transformando-os em meros xingamentos ideológicos. A apropriação superficial desses termos esvazia o debate político e impede que se nomeie com precisão os riscos autoritários contemporâneos. Essa prática é reflexo de uma profunda desinformação política e histórica da população, onde muitos não compreendem o que foi o fascismo histórico, e tampouco são capazes de perceber os verdadeiros sinais do fascismo ideológico na atualidade, que pode se manifestar na idolatria a líderes autoritários, na deslegitimação das instituições democráticas, na criminalização de adversários políticos e na supressão do livre-mercado e dos interesses subjetivos.

Sem dúvida, no contexto político atual, de intensa polarização política, é possível observar o surgimento de ideologias que resgatam elementos característicos do fascismo. A inspiração na atuação do totalitarismo da época também se faz presente nos dias de hoje, em discursos políticos que rejeitam o pluralismo, as instituições democráticas e os direitos civis fundamentais. No entanto, a falta de rigor conceitual, transformado o termo “fascismo” em mera associação com adversários políticos, confunde cada vez mais nossa compreensão histórica sobre o tema.

Giovana Teixeira da Silva é estudante no Colégio Coração de Jesus.

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