Urnas eletrônicas usadas no processo eleitoral.| Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo / Arquivo
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Nossa atual Constituição já tem mais de uma centena de emendas nestes 32 anos, mas tudo continua como dantes no quartel de Abrantes: insegurança jurídica, instabilidade política e crescente perda de credibilidade de nossos governantes.Evidentemente, seguirei pregando a imprescindível necessidade de termos uma nova carta constitucional, mas desta vez por meio de uma Assembleia Nacional Constituinte Exclusiva, como proposta pelo Instituto Democracia e Liberdade, de Curitiba.

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Basta prescrutar a história dos nossos 500 anos – três séculos de colônia e dois de nação independente – para nos certificarmos de que ainda não conseguimos ter um típico brasileiro, ou seja, uma mescla preponderante de todas as raças e culturas que ainda estão formatando a nossa gente brasileira. Cultural ou politicamente falando, cabe a pergunta: somos nortistas ou sulistas? Nordestinos ou cariocas, paulistas, mineiros ou brasilienses?Como povo, ainda somos este conjunto ou amontoado de migrações multirraciais, que não tem definido e caracterizado um modus vivendi marcado, típico e autêntico do brasileiro.

Com a sexta maior população do mundo, há no Brasil 7,4 milhões de mulheres a mais que homens. Elas são 52% dos 148 milhões de eleitores do país, criando um paradoxo inexplicável do nosso direito constitucional, que prega a igualdade de todos perante a lei, como diz o artigo 5.º da Constituição (“homens e mulheres são iguais perante a lei”), mas estabelece discriminação na Lei das Eleições (9.504/97), que no parágrafo 3.º do artigo 10.º, determina que “do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.

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Na prática, sabemos que a menor parte, os 30%, vão sempre para as candidaturas femininas. Basta consultar a composição das listas de candidaturas e composição do Senado, Câmara Federal, Assembleias Legislativas e Câmara de Vereadores para constatar esta verdadeira idiossincrasia, para não dizer misoginia, usada contra a maioria do nosso eleitorado.

A Constituinte tentou corrigir esta distorção, mas novamente confirmou-se que o establishment não permite reformas do sistema, como aliás aconteceu também com o sistema de governo, quando, na Comissão, aprovou-se o parlamentarismo, mas na prática do toma-lá-dá-cá deu-se mais um ano de governo a José Sarney em troca das famigeradas emendas parlamentares. Recentemente, o próprio Sarney afirmou que “precisamos fazer uma grande reforma política, com dois focos convergentes: o sistema de governo  temos que avançar para o parlamentarismo  e o sistema eleitoral  temos que acabar com essa multidão de partidos, acabar com o voto proporcional uninominal, implantar o voto distrital misto, implantar a democracia partidária”.

Caminhamos para um beco sem saída com o atual sistema de governo que, na essência, se mantém imutável desde a Proclamação da República, agravado ainda mais com a reeleição, porquanto o eleito já forma seu governo com objetivo de conseguir mais um mandato.

Como constituinte de 1988, sou testemunha ocular desta colcha de retalhos em que se transformou a tal de Constituição Cidadã, da qual tive a decepcionante experiencia de participar e, de vez, me fez desistir das disputas eleitorais pela descrença política no toma-lá-dá-cá”, concordando inteiramente com o mestre Modesto Carvalhosa quando afirma, em sua última obra, Uma nova Constituição para o Brasil– de um país de privilégio para uma nação de oportunidades, que:

Nenhum governo eleito sob a égide da Constituição de 1988 escapou deste aparelhamento do aparato burocrático racional a serviço dos partidos da coligação governamental, mediante o expediente dos cargos em comissão divididos entre os partidos que formam a maioria parlamentar. Assim foi no governo Sarney, o mais fisiológico de todos, e nos que se seguiram: governo Collor, eleito sob o lema da ‘caça aos marajás’; governo FHC, modernizante e muito capacitado, mas que não resistiu ao assalto oligárquico à organização racional burocrática ao ceder milhares de cargos aos partidos do Centrão visando a reeleição do presidente; três governos do PT, que aparelhou os entes da administração e as empresas estatais para o maior esquema de corrupção da história do pais; governo Temer, inteiramente dominado pelo Centrão, com inúmeros escândalos de corrupção; e o governo Bolsonaro, também eleito mediante promessa de quebra do regime oligárquico, mas que já de início do segundo ano cedeu inteiramente ao aparato burocrático aos partidos fisiológicos do chamado Centrão”.

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A única saída legitima será pelo poder originário da iniciativa popular (artigo 14, III da CF) e pela pétrea cláusula do artigo 1.º, parágrafo 1.º: todo poder emana do povo, por meio de constituinte exclusiva. Não importa que muitos pensem ser esta uma utopia baseada na Declaração Universal dos Direitos Humanos; mais dia, menos dia, ela será a luz no fim do túnel em que estamos encalacrados, sempre à espera de um novo salvador da pátria. Recentemente, o Chile nos mostrou ser possível, até mesmo deixando a presidência da Constituinte para uma mulher indígena, Elisa Loncón, do professora da Universidade de Santiago e da etnia mapuche.

Milhões de brasileiros têm o sonho de refundar o Brasil. Mas a ferrenha disputa pela reeleição do atual presidente, que quer continuar, e do ex, que pretende voltar, impede neste momento uma discussão racional e inteligente deste gigante em berço esplêndido, a potência da próxima década a ser a maior produtora de alimentos do mundo, mas que ainda não é considerada um “país sério” pelo gigantismo do Estado, pela corrupção dos nossos governantes e pelo crescente baixo nível dos nossos políticos, com raríssimas exceções. Amigos espalhados pelo mundo nos perguntam se é verdadeiro o nível de corrupção no Brasil, principalmente entre os governantes, mas ao mesmo tempo dizem estar impressionados com a gigantesca capacidade do nosso agronegócio, que supera outros países mesmo usando áreas menores de terras. Americanos, europeus e asiáticos ambicionam comprar terras no Brasil. Foi realmente verdadeiro o que Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei de Portugal sobre a terra descoberta, “aqui em se plantando tudo dá”.

A conclusão a que forçosamente temos de chegar: o povo tem feito com suor, esforço e determinação a sua parte, mas infelizmente os governantes não têm feito a sua.

Tivessem o mínimo de desprendimento e noção de grandeza, nossos parlamentares aprovariam, ainda em tempo para as próximas eleições, apenas quatro emendas, das milhares que tramitam ou estão à espera, estocadas no Legislativo, há mais de 30 anos. Com apenas quatro mudanças teríamos um avanço notável no nosso desenvolvimento e subiríamos no conceito dos países civilizados e desenvolvidos.

A primeira é o voto distrital, que aproxima o candidato do eleitor, diminui os custos de campanha e torna bem mais fácil ao eleitor saber da vida pregressa do candidato pela convivência dentro do distrito. Já o voto proporcional não passa de uma fraude pela exigência de se optar por um partido e não apenas pelo candidato. Nas eleições aparecem os paraquedistas, aquele candidato que não é do distrito, mas vem pegar o voto e depois some, ou logo em seguida muda de partido, mandando às favas o indefeso eleitor.

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A segunda mudança é o voto facultativo. A obrigatoriedade do voto faz com que a parcela desinteressada da política – os analfabetos políticos – tenha de votar e o faça sem critérios de escolha e sem consciência do poder que o voto representa na sua própria vida. Como disse Bertolt Brecht, “não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais”.

A terceira mudança seria a permissão para candidatos independentes, livrando-se da ditadura dos partidos políticos, implantada pelo artigo 14, § 3.º, III da Constituição, que exige filiação partidária. Temos de admitir candidaturas independentes. Nesta miscelânia de dezenas de partidos é difícil, para não dizer impossível, ao cidadão consciente juntar-se a grupos com um programa claro de governo, objetivos viáveis e pragmáticos, bem como definição objetiva e conceitual de sua ideologia, regime político e sistema de governo. Aliás, o atual presidente está encontrando dificuldades de filiar-se a um dos 35 partidos existentes.

Estes três itens são adotados em todos os países desenvolvidos do mundo e demonstram que sem eles a qualidade dos governantes não se aprimora; pelo contrário, se deteriora, como sabiamente dizia Ulysses Guimarães: “Não está satisfeito com esta legislatura, espere a próxima para ver no que vai dar”.

A quarta e última mudança seria um Judiciário isento de influências políticas, com estabelecimento de novo sistema de composição dos tribunais, a começar pelo STF, onde haveria exigência mínima de 30 anos de judicatura e 60 anos de idade, com um mandato de dez anos de duração.

Também haveria um rodízio entre os estados federados, de tal maneira que todos os 27 estados brasileiros, a seu devido tempo, pudessem ter representação neste Supremo Tribunal Federal. Falta apenas a tão decantada vontade política para que cada uma das cinco regiões da Federação (começando o rodízio com aquela região que até agora menos teve ministros) formasse uma lista sêxtupla, composta por quatro juízes ou desembargadores, sendo dois da Justiça Estadual e dois da Justiça Federal, completada com um indicado pelo Ministério Público e outro pela OAB regional do estado da vez a começar a indicação. Esta lista sêxtupla seria submetida ao CNJ, que optaria por uma lista tríplice, enviada ao Senado, que escolheria apenas dois, para que o presidente, finalmente, optasse por um nome.

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Precisamos efetivamente que o artigo 1.º da Constituição – “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos estados...” – seja uma realidade, e não que se privilegie apenas alguns estados (quase sempre os mesmos) ou grandes escritórios de advocacia que sacam de seus próprios sócios os futuros ungidos para a suprema representação e, como costuma acontecer, consigam despachos “de orelha”. Este rodízio incentivaria as carreiras dos aspirantes à suprema corte e cercearia a interferência política do presidencialismo imperial, que costuma pinçar nomes que rezem pela sua cartilha de interesses ou, como se diz, tenham o “QI”.

Não temos segurança jurídica. Como bem observou Paulo Bonavides, “destacamos e concordamos com o entendimento de que a democracia moderna oferece problemas capitais, ligados às contradições internas do elemento político sobre que se apoia (as massas) e à hipótese de um desvirtuamento do poder, por parte dos governantes, pelo fato de possuírem estes o controle da função social e ficarem sujeitos à tentação, daí decorrente, de o utilizarem a favor próprio (caminho da corrupção e da plutocracia) ou no interesse do avassalamento do indivíduo (estrada do totalitarismo)”.

Recentemente, os leitores da Gazeta do Povo deram notas aos integrantes do STF e o resultado nos envergonha. Basta citar um dos nomes dos atuais ministros que o grosso da população já sabe dizer “este é do Sarney, aquele do FHC, Fulano do Lula, Sicrano da Dilma, Beltrano do Temer e este último do Bolsonaro”. Como lembrou o também constituinte Hélio Duque, em “O STF e a subversão constitucional”, “no STF alguns dos seus ministros acham-se deuses do Olimpo no comportamento afrontador da democrática separação dos poderes. Muitos violam a Constituição, de quem seriam os guardiões, para, com verborragia digna de Odorico Paraguaçu, afirmar como fez o ministro Luiz Fux: ‘direito é o que os tribunais dizem’”.

Sem mudar o sistema de composição do STF, não teremos segurança jurídica. O artigo 93 da Constituição determinava que “Lei Complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios...”; decorridos 33 anos, esta clara omissão do Poder Judiciário faz com que ainda vigore uma lei da ditadura do presidente general João Figueredo: a Lei 7.170/1983, frequentemente usada pelo STF, como no recente caso do deputado federal Daniel Silveira; friso não apoiar suas palavras, mas a verdade nua e crua é a de que, com base em uma lei da ditadura, mais uma vez sem investigação, o STF agiu como vítima e julgou sem o devido processo legal. Não apenas por este exemplo – só invocado por ser recente e de notório conhecimento público –, ouso afirmar que também o artigo 102 da Constituição não vem sendo cumprido. Com este sistema de formação da suprema corte, não temos um “guardião da Constituição”, até porque o tal “guardião” ainda não fez o dever de casa.

Todas estas propostas já existem no parlamento, mas elas esbarram no establishment que sustenta a partidocracia para perpetuar privilégios como o foro privilegiado e a prisão em última instancia ou até atingir a prescrição. Bastaria acabar com a fraude do voto proporcional em que se vota na mulher e se elege homem, como aconteceu na última eleição em São Paulo, quando Janaina Paschoal se elegeu deputada estadual com mais de 2 milhões de votos, elegendo mais dez candidatos do seu partido, dos quais oito eram homens.

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Fosse possível isso, em uma geração a qualidade dos nossos políticos seria outra, não mais do toma-lá-dá-cá, mas do enxugamento do Estado, da profissionalização dos servidores públicos e da responsabilidade efetiva dos agentes políticos e governantes. Como ainda afirma Carvalhosa, “No regime oligárquico pseudodemocrático como o nosso, todo o poder emana dos partidos que formam o mosaico dos sucessivos governos do atraso, da injustiça, dos privilégios, da corrupção e da impunidade”.

Neste momento, os políticos profissionais, da rachadinha, que fazem uso e costume da imoralidade, estão tramando para derrubar a Lei da Ficha Limpa. Se isso acontecer, veremos novamente os corruptos e ladravazes dos impostos que sempre aumentam tentando mais uma vez enganar o nosso povo para, como sanguessugas, manterem-se mamando no presidencialismo do toma-lá-dá-cá.

Nilso Romeu Sguarezi é advogado e foi membro da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88.