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Em 1956, dez anos antes da famigerada Revolução Cultural, Mao Tsé Tung proferiu uma de suas mais célebres frases: "Deixem que floresçam cem flores". A ideia era permitir as críticas aos rumos do Partido Comunista Chinês e ao governo do próprio Mao; infelizmente, a beleza da frase escondia uma intenção maquiavélica que foi posta em prática, de identificar e suprimir os críticos.

Por incrível que pareça, é possível enxergar sabedoria na frase. Abstraindo sua utilização horrorosa – uma faca é apenas uma faca, até que seja usada para matar ou para passar margarina em uma fatia de pão –, é possível vê-la, de fato, como um convite à crítica. Ou melhor, como um convite à pluralidade de ideias e ao contraditório.

Nesta semana, nesta Gazeta do Povo, o colunista Carlos Ramalhete – sempre agudo, graças a Deus – publicou um artigo contestando a adoção de crianças por casais homossexuais. Causou vulcânico furor, como pudemos acompanhar nas redes sociais. Foi chamado de monstro, fascista, homofóbico e obscurantista. Tomou socos de todos os lados.

Desconsiderando o teor de sua opinião e também da minha (no contexto deste artigo, pouco importa se eu apoio ou execro a adoção de crianças por homossexuais ou a Marcha das Vadias), vejo em Ramalhete uma virtude. "Meu Deus, mas ele é um monstro! Logo, você é um fascista também!" – aceito a eventual crítica com tranquilidade. Com seu boné de leiteiro e seu cachimbo, o colunista é um pandego ou um mal intencionado. Muito mais que isso, porém, é alguém que tem coragem de fazer valer o princípio do "florescer das cem flores", ou seja, de colocar uma opinião que destoa do canteiro de flores iguais e normativas e ter envergadura para encarar as críticas.

Ao manifestar seu pensamento, Carlos Ramalhete, minimamente, fez movimentar a roda do pensamento, obrigou nossa moral média correta e amigável a mostrar os dentes e a partir para o ataque. Nada melhor, enfim, para exercitar a razão – ou para demonstrar sectarismo.

Em uma de minhas inodoras colunas recentes, escrevi algo como "os oprimidos também nos oprimem", para expressar o fato de que, muitas vezes, acabamos reféns de uma visão de mundo. O "caso Ramalhete" demonstra isso, em especial quando somos confrontados com a maré ácida de xingamentos. Ele é um idiota? Eu sou um idiota? Opinião digna e aceitável – desde que, é claro, seja acompanhada de argumentos que a sustentem. Eu quero estar errado, e quero que você demonstre isso. Que permita, enfim, que floresçam cem, mil ou 10 mil flores. A verdadeira civilização, vale lembrar, nasce no contraditório.

Rodrigo Apolloni é colunista e blogueiro da Gazeta do Povo.

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