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Se médico fosse, iniciaria este texto exaltando a importância desta profissão: uma cidade de doentes é uma cidade infeliz. Se advogado fosse, iniciaria afirmando que bastaria respeitar as leis para que nossas cidades fossem melhores: uma cidade de foras da lei é uma cidade de babel e que, ao não valorizar a convivência, impõe um desgaste generalizado. Como arquiteto, afirmo que este é o verdadeiro profissional que conta com o conhecimento para deixar essas mesmas cidades mais humanas, criativas, agradáveis e racionais em termos dos recursos que utiliza para existir.

Haveria otimismo exagerado e corporativismo nessa afirmação se não mencionasse o necessário consórcio de outros profissionais que podem contribuir para esse intento. Todavia, se há exageros, não há mentiras. Ao terminar seus cinco anos de graduação o arquiteto está preparado, legalmente, para atuar nas diversas escalas das coisas que o homem constrói nas cidades: da pequena reforma na pe­­que­­na casa, ao projeto do edifício, do hospital e do shopping center, à rede viária urbana e às infraestruturas que permitem relações entre uma cidade e outra, chegando, portanto, à escala regional dessa profissão. De fato, muita pretensão profissional. Se isso for verdade, e acho que realmente o é, o papel do arquiteto na construção das cidades não é reduzido.

Mesmo um bom arquiteto pode sucumbir às exigências do mercado e às esquisitices do cliente que o contrata. Um arquiteto pode também sucumbir às imposições do poder. Hitler sabia disso e para tanto contava com os serviços do arquiteto Albert Speer nas obras colossais que enalteciam sua ideologia. Brasília, de Niemeyer e Lúcio Costa, não foi apenas um projeto de ocupação do território brasileiro, mas também por meio de sua arquitetura, um sinal concreto que passávamos a ser um país moderno. Se no primeiro exemplo a arquitetura foi importante para expressar um poder, no segundo expressou um otimismo de mudança.

A arquitetura pode expressar também uma cidade mais agradável de se viver; nesse caso, o risco projetual que define um parque de Curitiba, uma recuperação da área portuária do Rio de Janeiro, uma renovação do centro de São Paulo podem exemplificar. O traço que projeta a arquitetura de um conjunto habitacional, seja o do assim considerado primeiro conjunto popular do Brasil, o Vila Nossa Sra. da Luz dos Pinhais, em Curitiba; sejam os reordenamentos de favelas pelo Brasil adentro, também atesta a importância da arquitetura, dessa vez pelo seu compromisso social. Em todos esses exemplos, a importância da arquitetura fica clara; sobra para discutir a qualidade do projeto, seu compromisso com o todo da cidade, com a história da população, dentre outros fatores que cabem ao arquiteto, senão decidir, influenciar.

Ora, mas, então, mais importante que o arquiteto é a arquitetura. Vejamos isso com exemplos.

Imaginemos a cidade de Curitiba sem a Catedral Metropolitana: para quem vem pela Rua Cruz Machado e quer ir ao norte da cidade: o contorno pela Praça Tiradentes não seria mais necessário. Imaginemos Paris sem a Torre Eiffel: nada destoaria na paisagem de edifícios baixos dessa cidade. Imaginemos o Rio de Janeiro sem a Candelária: o fluxo de carros pela Presidente Vargas escoaria mais facilmente. Imaginemos o Palácio Iguaçu desaparecer no ar: poderíamos prosseguir pela Av. Cândido de Abreu sem viradas à esquerda ou à direita. Ah! que prazer uma cidade sem arquitetura, sem prédios para ocupar, para desviar, para diminuir a velocidade, prédios que não nos permitem implantar mais vias expressas, sem obstáculos!. Logo comemoro, logo penso! Mas não existe uma cidade sem prédios, não existe uma cidade sem arquitetura e não deveria existir uma cidade sem arquitetos. Mas não nos empolguemos tanto, vamos com cautela nessa importância a esse profissional.

Recentemente, o arquiteto David Adjaye, com escritório em Londres, afirmou que já resta pouco espaço para arquitetos que buscam distinção por meio de obras caras para construir, custosas para manter e vaidosas no cenário urbano. A arquitetura que a cidade quer é aquela que, pequena, se soma a outras, só isso. Ora, mas disso pode resultar uma cidade enfadonha, como o cenário sem fim de casinhas das periferias brasileiras ou das áreas residenciais das cidades da era comunista. Não necessariamente: o arquiteto saberá subsistir a vaidade do volume pela integração com a natureza, a suntuosidade pela integração com o espaço público, a mesmice pela singularidade do uso da obra.

Pois é, termina-se este texto como uma apologia que no começo se anunciou: se arquiteto fosse – e sou – diria que a cidade não é uma cidade se não fosse o arquiteto.

Clovis Ultramari, arquiteto, é professor na PUCPR.

Este texto faz parte de uma rodada quinzenal de discussões sobre a cidade. Também integram o grupo os arquitetos Fabio Duarte, Irã Taborda Dudeque e Salvador Gnoato. Tema desta rodada: o papel do arquiteto na construção das cidades.

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