Milhares de brasileiros, não necessariamente afrodescendentes, tratam-se, carinhosamente, por "minha nega", "meu nego", "neguinha". Pelé, dos mais amados, é chamado comumente de Negão. Não consta que ninguém tenha se ofendido com isso – e esperamos que a visão míope da chamada correção política não rotule tais tratamentos como degradantes ou pretenda que devam ser excluídos.

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Em particular, escolas sempre foram locais propícios a apelidos, a folguedos beirando à crueldade, apesar de todos os esforços de pais e professores. Crianças são sinceras e, muitas vezes, como definiu Sartre, "polimorfos cruéis", rotulando características físicas, tomando o que desejam sem noção de propriedade, partindo para o confronto físico sem consideração pela discussão filosófica.

Contraditoriamente, hoje cuidamos mais do linguajar, somos orientados quanto à possibilidade do tormento que podemos infligir aos demais e, apesar disso, nunca se registrou tanta violência pesada em ambiente escolar. Recentemente, até mesmo professores têm sido acusados de racismo por dizer aos alunos, mesmo que em tom de brincadeira, frases e tratamentos interpretados como ofensivos.

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Uma visão rápida pode denotar, sim, preconceito – e odioso. Mas não se trata disso. Docentes com carreiras profissionais meritórias, pessoas conhecidas por seriedade, equilíbrio e gentileza, bons professores, com a idade, passam a ver seus alunos um pouco como filhos, principalmente no caso em que são muito mais novos. Ao vê-los fazendo estripulias em momentos sérios, brincando em lugar de aprender, comendo em sala de aula (o que não é proibido, mas inadequado), fazem observações jocosas, muitas vezes interpretadas como agressivas.

Não somos totalmente donos do que falamos – uma parte é propriedade de quem ouve. Sabem disso os usuários de redes sociais que, quando digitam algo que consideram engraçado, o seguem imediatamente por onomatopeias de risos (rsrsrs, kkk), deixando claro a quem lê qual a intenção. Na fala, o tom da voz, o gestual, a expressão do interlocutor, substituem os "rsrsrs" – quase sempre. Distinguir uma brincadeira de uma ofensa nem sempre é fácil; exige maturidade, conhecimento do outro e depende até do momento que se vive, pois a zombaria aceita hoje poderá ser encarada como litígio amanhã.

O fato é que nunca convivemos tão proximamente. Distâncias foram encurtadas pelos meios de transporte e pelas mídias sociais. Fala-se com pessoas instantaneamente, estejam elas próximas ou em outros lugares do globo terrestre. Nessa mesma velocidade, a praga do politicamente correto se espalha – e pessoas, por tudo respeitáveis, parecem não desejar apenas a deferência informal, suave, algo brejeira, que nós, brasileiros, dedicamos aos nossos iguais. Parecem ansiar pela solenidade, mofado apanágio dos imperadores e dos papas.

Jairo Marques, colunista da Folha de S.Paulo, cadeirante desde a infância, escreve sobre uma menininha que tem paralisia cerebral, contando de suas dificuldades, doçura e fortaleza: "É cadeirantinha, sabida e atrevida, uma vez que é firme no propósito de mostrar que pode, que deve e que vai seguir adiante, mesmo com tanta gente desumana na chamada humanidade". Faz referência a "mal-acabadinha", termo que usa com frequência e ironia apenas permissível de cadeirante para cadeirantinha. E isso, muito longe de ser ofensivo, humaniza, lembra-nos de que não se trata de uma abstração sobre rodas que, por isso, precisa e tem direito a prioridades de acesso. É uma criança e, como todas as outras, precisa ser amada e que brinquem com ela.

Em tempos de adesão irrefletida ao aparentemente virtuoso, nosso senso de humor acabou?

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Wanda Camargo, educadora, é assessora da presidência das Faculdades Integradas do Brasil (UniBrasil).