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Servir ou reprimir? A encruzilhada moral das polícias no atual governo

O governo atual instrumentaliza a Polícia Federal e forças estaduais para reprimir opositores e consolidar seu poder, corroendo liberdades e direitos. (Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo)

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Para a consolidação de qualquer regime ditatorial, é fundamental que os déspotas utilizem as forças de segurança como meio de operacionalizar suas ações de força contra a população e seus adversários. Foi assim na antiga União Soviética, na Alemanha nazista e na Itália de Mussolini. E ainda funciona do mesmo modo nas autocracias modernas, como Cuba, China ou na Rússia de Putin. Da mesma forma, a atual junta judicial que governa o Brasil não poderia exercer seu autoritarismo sem sua própria polícia política.

No caso tupiniquim, nossos iluminístros escolheram a Polícia Federal para colocar em prática suas ações mais violentas. Assim, mandados sem fundamentação legal, prisões em massa e abordagens intimidatórias, infelizmente, se tornaram rotina para uma parcela significativa dessa força policial.

Não sei se a escolha se deu pela subordinação da Polícia Federal ao Ministério da Justiça ou pelo prestígio que a corporação gozava junto à população. De qualquer forma, os membros da instituição estão sendo usados como ferramenta de violência institucional pelos líderes da atual estrutura de poder em processo de consolidação.

A argumentação geral dos representantes da instituição é o cumprimento de ordens judiciais. Como sempre, a burocracia e o formalismo se apresentam como um escudo de proteção legal para o cometimento de ilegalidades e violações de direitos humanos.

Ainda que o nosso ordenamento jurídico proteja os agentes do Estado do cumprimento de ordens ilegais, não é difícil identificar os motivos pelos quais há tão pouca resistência dos dirigentes e membros da corporação à execução dos desmandos emanados da Suprema Corte.

Primeiro, existe o medo real de que a artilharia judiciária volte seus canhões para qualquer policial que ouse questionar seus desmandos. No caso dos policiais na base da pirâmide, o medo de processos administrativos, punições e até exoneração de seus cargos são fatores de motivação para que continuem a executar ordens flagrantemente ilegais.

Mas não podemos descartar os oportunistas e carreiristas que, infelizmente, existem nas fileiras da força. Policiais que se sujeitam às mais porcas tarefas na esperança de ganhar migalhas do regime, como promoções, cargos comissionados, cursos e até posições em organismos internacionais, como a Interpol.

A verdade é que a maioria dos agentes se submete a esse trabalho vergonhoso principalmente para manter seus empregos e proteger suas famílias. Mesmo que pareça uma atitude mesquinha, precisamos considerar que este é um fator de alta relevância, que só pode ser ignorado por aqueles que jamais estiveram sob ameaça semelhante. 

Pode não ser uma justificativa, mas, sem dúvidas, é uma explicação razoável para entender a submissão de muitos policiais à execução das missões emanadas pelas decisões da Suprema Corte.

Mas não é apenas a Polícia Federal que está debaixo da ameaça de ser usada como ferramenta de uma estrutura de poder autoritária. A derrocada do império da lei não será evitada sem a oposição de forças políticas e da sociedade.

Essa resistência será demonstrada por manifestações populares, como já começamos a observar nos últimos dias. E a supressão de movimentos e manifestações nas ruas só poderá ser executada com o uso massivo das polícias militares, que possuem a capilaridade, os efetivos e a força suficientes para reprimir a população nas ruas.

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O desafio para os comandantes será a manutenção de seus status, cargos e até mesmo empregos, em contraponto à transformação de suas corporações em uma marreta contra a mobilização popular. E os mesmos dilemas aos quais estão submetidos os policiais federais serão levados a oficiais e praças em todo o território nacional. Com o agravante de que os policiais militares estão submetidos a uma legislação muito mais severa.

Os regulamentos e a legislação militar podem restringir liberdades e colocar na cadeia pessoas por crimes que, para civis, sequer seriam consideradas infrações administrativas. Diante deste quadro, o que mais me assusta é o completo silêncio de associações, entidades e dos membros das corporações sobre este assunto.

Muito desse medo é derivado de represálias reais, como, por exemplo, a prisão de oficiais que estavam de serviço no dia 8 de janeiro, em Brasília. A selvageria na supressão de direitos dos oficiais integrantes do alto comando da Polícia Militar do Distrito Federal foi um recado claro a qualquer policial que ouse se opor a qualquer ação dos atuais mandatários da nação.

O medo contaminou de forma tão avassaladora os membros da corporação, que a prisão dos policiais no fatídico dia tornou-se assunto proibido dentro da caserna, sussurrado nos corredores, como um sinal do destino de qualquer policial que tenha a audácia de honrar seu juramento, cumprir e proteger a Constituição brasileira.

O questionamento que deveria estar dominando todos os círculos de estudos e debates sobre segurança pública é: como blindar as corporações e impedir que elas sejam transformadas em ferramentas para a consolidação do autoritarismo? E ainda mais: como os comandantes e oficiais poderão resistir à utilização de seus efetivos no cumprimento de ilegalidades?

Qual será o limite entre a proteção de seus empregos e carreiras e a defesa da liberdade do povo? A solução avestruz não irá impedir que as polícias militares sejam devastadas pela tomada de suas atribuições constitucionais e submetidas aos ditames persecutórios em curso no país.

Estamos nos aproximando de um momento de inflexão, e seremos obrigados a tomar decisões que podem mudar o curso de nossas vidas.

No caminho mais fácil, poderíamos nos tornar cúmplices de um sistema opressor. Uma hierarquia de poder que persegue e destrói a vida de pessoas cujo único crime foi exercer sua liberdade ou cumprir seu dever. Nesse caminho existe uma certa segurança. Podem-se manter salários, carreiras e o conforto pessoal, mesmo que às custas do sofrimento alheio e da corrupção da consciência.

Na outra via, toma-se um atalho para o inferno, com o sacrifício da estabilidade, da segurança e da tranquilidade pessoal. Entretanto, com a preservação da consciência, dos valores e das virtudes que nos tornam mais do que meras engrenagens da burocracia administrativa do Estado.

Mas, qualquer que seja a escolha, é preciso lembrar que, como diz um ditado militar: não há mal que dure para sempre, nem bem que seja eterno. Ao fim dessa crise institucional, podemos esperar que todos os colaboradores e facilitadores das ações autoritárias e violentas em curso sejam cobrados por suas ações e omissões. Nesse momento, como aconteceu algumas vezes na história, não será aceita como justificativa a frase: eu estava apenas cumprindo ordens.

Talvez seja pedir demais que os membros das forças policiais se apresentem como sacrifício vivo no altar da democracia. Que homens e mulheres, que já arriscam diariamente suas vidas como parte de suas rotinas de trabalho, também estejam dispostos a abrir mão do próprio sustento e do bem-estar de suas famílias. Mas ignorar essa missão pode significar, para os policiais, abrir mão do próprio sentido de sua profissão, que é, em última análise, servir e proteger a sociedade brasileira.

Luiz Fernando Ramos Aguiar é especialista em segurança pública e tenente-coronel da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF).

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