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Discordâncias de opinião fazem parte do jogo político, mesmo entre parceiros e aliados. Mas o que estamos assistindo situa-se em patamar mais profundo, estrutural: o cidadão brasileiro está sendo empurrado para uma perplexidade

Terra dos paradoxos e incoerências, pátria dos contrastes e contradições, o Brasil está sendo atropelado por uma perigosa desconexão. Ninguém a engendrou, não é fruto de conspirações, está sendo incubada há longo tempo por um descaso institucional que empurra o país para uma sucessão de empreitadas sem qualquer costura conceitual.

Três decisões da última semana escancararam a incongruência orgânica com a qual a sociedade brasileira é obrigada a conviver: enquanto o STF aprovava por unanimidade a permissão para a realização de manifestações em favor da liberação da maconha, o governo e o Legislativo corriam esbaforidos na direção contrária favorecendo a entronização do segredo, da ocultação e, em última análise, da censura.

Nossa corte suprema, instância máxima do Judiciário, enquanto colegiado encarregado de estabelecer as coerências básicas que nortearão nossa existência coletiva, não julgou nem poderia julgar a liberação ou proibição do uso da maconha. Interessava-a confirmar um dos pilares do Estado de Direito, os oito ministros presentes ao julgamento pronunciaram-se a favor da intangibilidade do princípio da liberdade de expressão.

Entrementes, o Executivo e o Legislativo deixavam-se dominar pelo velho autoritarismo, matriz do culto ao sigilo e aos embargos, quando a Câmara dos Deputados aprovou na mesma quarta-feira a medida provisória que permite ao governo ocultar dados sobre orçamentos das obras para a Copa e a Olimpíada impedindo a imperiosa fiscalização dos critérios e decisões da Fifa e do Comitê Olímpico Internacional.

Claro atentado à soberania e ao direito de controlar o dinheiro do contribuinte, a medida provisória foi imediatamente classificada como inconstitucional pelo procurador-geral da mesma República que a patrocinou. Não teria sido mais prudente e lógico consultar a PGR e a AGU (Advocacia-Geral da União) antes de embarcar numa desgastante polêmica que expõe nossas incongruências e conflitos internos?

A decisão do STF e a votação da medida provisória foram praticamente simultâneas, mas será que o governo não pressentia a disposição dos supremos magistrados em manter sua devoção à cláusula pétrea da Carta Magna que garante o direito de manifestação e rejeita qualquer mordaça? Ninguém percebeu o desacerto que se armaria quando os deputados aprovassem um instrumento que vai na direção contrária e barra o direito de saber?

É pedir muito aos detentores do poder que sejam mais sutis e atentem para a inteligência e a sensibilidade da cidadania?

Os incríveis vaivéns da Lei de Acesso às Informações revelam um acervo de discrepâncias ainda mais graves. O projeto foi apresentado com pompa e circunstância no fim do governo Lula, a presidente Dilma Rousseff (atendendo às promessas da campanha eleitoral) recomendou uma tramitação urgente. Não contava com o ataque de dois caciques da base aliada, os senadores Sarney e Collor – por coincidência, ex-presidentes da República – que obviamente investiram pesado na manutenção do sigilo eterno dos documentos oficiais na esfera da Defesa e das Relações Exteriores.

Para não aumentar os dissabores com aliados, a presidente ensaiou a retirada da chancela de tramitação urgente, mas o ex-presidente Lula entrou em cena para proclamar que "o povo tem mais é que saber". Se Lula tem razão, está automaticamente confrontando seus colegas Sarney e Collor. Se a presidente Dilma insiste na abertura dos arquivos, está contrariando o seu vice, Michel Temer, favorável ao sigilo.

Discordâncias de opinião fazem parte do jogo político, mesmo entre parceiros e aliados. Mas o que estamos assistindo situa-se em patamar mais profundo, estrutural: o cidadão brasileiro está sendo empurrado para uma perplexidade que lhe retira o discernimento sobre o que é certo ou errado. Nessas circunstâncias, podem produzir-se rupturas irremediáveis.

Alberto Dines é jornalista.

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