| Foto: Stan Honda/AFP

Em uma campanha gigantesca, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) solicita ajuda para os rohingya – povo de religião muçulmana que ingressa rápida e maciçamente em Bangladesh, fugindo da maioria budista em Myanmar, criando mais uma crise humanitária. A questão ganha um contorno maior em razão de a presidente de Myanmar, Aung San Suu Kyi, ter recebido, em 1991, o Prêmio Nobel da Paz, em face de sua resistência pacífica contra os militares que governavam, à época, o país. Há uma desilusão de alguns diante da inação da presidente.

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Longe de desculpar o indesculpável, a questão, em si, tem contornos bem mais complexos. Objetivamente, embora Aung San Suu Kyi seja a presidente, o poder ainda está nas mãos dos militares. Logo, ela tem mais uma força simbólica do que, de fato, o controle do país. Outro aspecto que não pode ser deixado simplesmente de lado é o fato de a religião, em regra, definir (e muito) todo o antigo subcontinente indiano.

Aung San Suu Kyi tornou-se uma personagem de si própria

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Embora Myanmar (a antiga Birmânia) tivesse uma administração separada do antigo subcontinente indiano desde 1937 e, na Segunda Guerra Mundial, tenha sido ocupada pelos japoneses, a região fez, durante 200 anos (até 1948), parte de um mesmo domínio inglês. E, sob o controle inglês, as identidades majoritárias estiveram ligadas à religião, em primeiro lugar, e só depois à própria identificação étnica. Paquistão e Bangladesh são mulçumanos (embora o primeiro etnicamente Pashtun, Baluchi, Punjabi e Sindhi; e o segundo, bengali), a Índia, hindu; Ceilão (atual Sri Lanka) e Birmânia, budistas. As minorias religiosas passaram a ser perseguidas, como os rakhines, budistas que se encontram na área de Bangladesh.

Em época do politicamente correto, superar barreiras não é um desafio tão fácil ou simples. O contexto em que Aung San Suu Kyi recebeu o Nobel da Paz tinha sentido, pois chamou a atenção do mundo contra um brutal regime, mas isso não significa uma santidade da parte de quem o recebeu. Theodore Roosevelt, defensor da política do “porrete”, recebeu o Nobel da Paz em 1906; George Marshall, do Plano Marshall, usado para combater o comunismo, em 1953; Henry Kissinger e Lê Duc Tho, em 1973; Anwar Al Sadat e Menachem Begin, em 1978; Mikhail Gorbachev, em 1990; Yasser Arafat, Shimon Peres e Yitzhak Rabin, em 1994. Nenhum deles mudou sua conduta após receber o prêmio; todos continuaram sendo “humanos”, isto é, com as qualidades e defeitos inerentes à condição humana.

Leia também: Um Nobel a ponderar (artigo de Jorge Fontoura, publicado em 16 de outubro de 2017)

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Aung San Suu Kyi tornou-se uma personagem de si própria, idealizada na sua condição de mulher, ressaltando-se sua educação ocidental e sua luta não violenta contra uma ditadura militar. Um símbolo! Poderia ter feito mais para impedir essa enorme crise? Talvez sim, renunciando, eloquentemente, à presidência!

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Esperar “salvadores da humanidade” é criar uma expectativa injusta de um ser tão perfeito que não possa errar.

Luís Alexandre Carta Winter, doutor em Integração da América Latina, é professor de Direito Internacional na graduação e pós-graduação lato e stricto sensu da PUCPR, e professor de Relações Internacionais na Unicuritiba.