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Suécia. Imagem ilustrativa.
Suécia. Imagem ilustrativa.| Foto: AFP

Com três ou quatro exemplos, tentarei indicar uma característica do mundo moderno que, por assim dizer, passou a fazer parte da paisagem, a tal ponto que raramente suscita alguma dúvida sobre ser ou não algo razoável.

Há alguns anos, um telejornal reproduzia uma ligação feita por sequestradores à família da vítima. Num dos trechos, diz a voz: “se vocês não depositarem o dinheiro, nós vamos estar matando o filho da senhora”. Criminosos já vinham, como se pode notar, evitando o modo imperativo e colocando em seu lugar algo mais suave, no gerúndio. A comicidade da situação tem a ver, claro, com o uso de uma linguagem não agressiva numa situação em que a ideia era justamente mostrar agressividade.

Na sequência de minha memória, e desde que a humanidade descobriu que o leite de vaca pode substituir razoavelmente o leite materno e também ser bebido por adultos, a forma comum de seu consumo doméstico passou por vários aperfeiçoamentos: garrafas de vidro, sacos plásticos, embalagens do tipo tetra pak, embalagens do tipo tetra pak com abertura e tampa e, recentemente, embalagens do tipo tetra pak com abertura maior, tampa e alto da caixa inclinado, de modo a diminuir ao máximo a dificuldade do consumidor em abrir ou despejar o leite em outro recipiente.

Giovanni Papini escreve em um de seus livros que, com a diminuição dos custos de produção dos livros, ao longo do século 17, desaparecia a necessidade de se pagar caros professores para ensinar os filhos daqueles poucos que poderiam fazê-lo: os livros eram basicamente um registro permanente daquilo que, a cada aula, um professor tinha de imperfeitamente repetir. Ainda que exista grande lógica nessa observação, ocorreu nos séculos seguintes um aumento tanto do número de livros quanto de professores. Atualmente, smartphones poderiam substituir sem muita dificuldade, em termos de transmissão de conhecimento, tanto livros quanto professores. Ocorre também que a quantidade de livros, professores e smartphones igualmente continua a crescer. Mas, fora de qualquer dúvida, a facilidade de acesso ao conhecimento aumentou em proporções geométricas nas últimas décadas.

Os exemplos estão por quase toda parte, e talvez já sejam mesmo parte de tudo. Por contraste, a comparação com uma grande aventura de 500 anos atrás, período que muitos consideram como sendo o início do mundo moderno: os grandes descobrimentos portugueses dos séculos 15 e 16. Em um contexto de altíssimos riscos, portando quase inacreditável coragem, determinação e resistência física, viajaram os portugueses em condições que deixariam envergonhado o mais ousado e bem equipado praticante de esportes radicais da atualidade.

A razão de haver feito essa comparação encontra-se no parágrafo anterior: havia, então, necessidade de um altíssimo grau de coragem para enfrentar um mundo de enormes perigos e riscos. Um desafio em tal grau inclusive não poderia ser explicado apenas pelo desejo de lucro; para assombro dos demais países europeus, os portugueses, católicos, enfrentaram todos esses riscos em busca de riqueza material, com grande domínio da escassa técnica existente e levando consigo uma fé comparável à dos primeiros calvinistas descritos por Weber. Não é sem razão que Camões observa que fizeram, no mundo real, aquilo que os gregos apenas sonharam fazer em suas lendas, e que “houvesse mais mundo, eles o teriam alcançado”.

Quinhentos anos depois, essas e outras muitas necessidades deixam de existir, sendo substituídas por meios cada vez mais seguros, eficientes e fáceis. Um mundo de crescente e objetiva adequação entre meios e fins, novamente lembrando Max Weber. Em variadas áreas da vida, o ser preciso fazer pode ser cada vez mais e vantajosamente substituído por alternativas aveludadas: alimentos cada vez mais adequadamente preparados, carros que nem sequer precisam ser dirigidos, gerenciamento de boa parte da vida por meio de smartphones, e sobrevivência e segurança garantidas pelo Estado e por empresas especializadas.

Não deveria, nesse sentido, haver qualquer espanto com o encanto provocado por atividades que pouco exigem de seus adeptos: entretenimento eletrônico, animais de estimação, equipamentos para prática de esportes etc. Torna-se difícil para uma geração fazer-se compreender à anterior, sobre a quantidade de coisas que já não precisa fazer, sobre quão menor passou a ser necessário seu esforço para realizar desde as coisas mais banais (beber leite, por exemplo) até as mais grandiosas (escrever um documento importante usando apenas as teclas Ctrl-C e Ctrl-V). Não por acaso, áreas como entretenimento e turismo, economicamente irrelevantes há 200 anos, são atualmente os produtos de maior peso no PIB de alguns países desenvolvidos.

Nenhum campo parece resistir a essa paradoxal lógica, de perdermos nossas melhores capacidades na medida em que ampliamos nosso controle sobre o mundo. Na esfera religiosa, Afonso de Albuquerque, que sucedeu Vasco da Gama como vice-rei na Índia e fixou bases do império português a 20 mil quilômetros de distância de Lisboa, assistia diariamente às missas e participou pessoalmente dos assombrosos episódios do período (entre eles, um cerco de 77 dias em Goa, com seu navio sendo bombardeado pelas duas margens do rio pelos muçulmanos e recusando ofertas de rendição). São Bento, ao escrever as regras que disciplinariam a vida monástica, observava serem elas muito tranquilas, feitas para homens fracos como eles, e não como os Pais do Deserto. No momento em que escrevo, a Arquidiocese de Maringá, antecipando-se às medidas da própria prefeitura, decide suspender por dez dias todas as missas em suas paróquias por força do avanço da epidemia de coronavírus, que até novembro de 2020 já havia dizimado 0,08% da população.

A razão, novamente dizendo: uma quantidade cada vez menor de esforço, conhecimento e risco é necessária para alcançar os mais variados objetivos. Inclusive responsabilidade por nossas próprias ações: a correção política, espécie de versão teórica desses processos, aparenta ser mais exigente com as atitudes humanas em sociedade quando, na verdade, o é praticamente apenas em relação aos críticos de seus protocolos; para todos os outros casos, como foi observado acima, nenhuma responsabilidade ou esforço é exigido. Seus partidários, de governantes a artistas, de treinadores esportivos a anunciantes, podem, inclusive, apenas simular que acreditam nos princípios da correção política. Não se requer, nem mesmo aí, esforço e envolvimento, bastando alguma forma de endosso eletrônico ou alguma bem pensada omissão.

No futuro, será de fato cada vez menos preciso fazer, pensar ou correr riscos; ou pelo menos nada além daquilo que grandes corporações e governos poderão, em seu lugar, “estar fazendo por você”. Propostas como as de renda básica universal confirmam um mundo de coisas que já não precisam ser alcançadas; ou, se o forem, apenas com um mínimo esforço: no mais das vezes, apenas decidir onde gastar o próprio dinheiro de modo cada vez mais prático, rápido e fácil.

Fábio Viana Ribeiro é professor associado da Universidade Estadual de Maringá e apresentador do programa Bibliofonia, da UEM FM.

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