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Polícia Federal abriu inquérito para investigar ataque hacker ao STJ, o maior do gênero já registrado contra um órgão público.
Sede do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília.| Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

As lições emergentes do ataque cibernético ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) são inúmeras e nem sequer caberiam neste espaço reduzido. Contudo, o convite para reflexão aqui gira em torno do problema da falta de publicidade dos autos processuais, da centralização dos bancos de dados dos tribunais brasileiros e da completa ausência de interoperabilidade do Poder Judiciário. Embora o evento seja de se lamentar e capaz de gerar empatia, é bom lembrar que a destruição também pode ser criativa e nos deixa uma importante lição: a Justiça deve ser aberta, legível, interoperável e escrutável; a estratégia de dados fechados é um tiro pela culatra.

Antes de tudo, vale uma nota sobre a tecnologia e a sua intrínseca fragilidade. Se até o Pentágono já foi invadido, o que poderíamos dizer do STJ? A questão não é o ataque em si, pois tudo que é conectado é vulnerável. Digitalizar qualquer organização requer apetite de risco, o que é razoável se avaliarmos o impacto positivo da inovação. Mas não é de hoje que destacamos a má gestão do orçamento do Poder Judiciário brasileiro, que representa, proporcionalmente, uma das mais altas fatias do mundo – 1,5% do PIB ou R$ 100 bilhões. Por má gestão, estamos falando de investimentos equivocados. Portanto, aqui, o diagnóstico também é sintoma.

Possuindo o Estado o monopólio da jurisdição, o acesso pela sociedade aos autos judiciais é uma extensão lógica, objetivando o controle democrático e promovendo a segurança jurídica

Parece que foi no século passado, mas em 2019 o então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, ao discutir a regulação do acesso aos dados dos processos judiciais, afirmou categoricamente que algumas lawtechs especializadas em captura, tratamento e disponibilização de dados estariam sobrecarregando os sistemas dos tribunais. Ótima ideia: em vez de melhorar o sistema, vamos restringir o acesso!Com o devido respeito, o argumento equivale a dizer que o Uber não pode existir porque eu tenho um celular de primeira geração cujo sistema operacional não suporta o aplicativo. Pior ainda. É um recado para os mal intencionados de que o Poder Judiciário brasileiro não resiste a um simples ataque hacker de força bruta: fait accompli.

A sobrecarga e o aumento do dispêndio de recursos com tecnologia da informação, com o perdão do truísmo, são inerentes ao século 21 – algo que talvez seja difícil para o nosso modelo oitocentista de Poder Judiciário compreender: modelos escaláveis com pouca mão de obra e muito investimento em tecnologia, hoje, dominam o mundo. Para os menos versados, escalabilidade é um atributo que descreve a capacidade de uma organização se desenvolver e gerenciar a demanda crescente. Essa atividade é realizada por softwares, que vão sendo atualizados de acordo com a necessidade.

Felizmente, a gestão do ministro Luiz Fux vem demonstrando uma grande inclinação ao investimento em tecnologia, com a criação de um comitê para estudar proteção de dados e Justiça aberta, o “Juízo 100% Digital”, e diretrizes para uso de inteligência artificial no Poder Judiciário. É preciso agora seguir o exemplo internacional de Open Justice. Possuindo o Estado o monopólio da jurisdição, o acesso pela sociedade aos autos judiciais é uma extensão lógica, objetivando o controle democrático e promovendo a segurança jurídica. A justiça não só deve ser feita, mas deve ser vista sendo feita.

Há um quê de justiça poética no incidente. E não estamos falando dos inúmeros memes envolvendo a Súmula 7 do STJ ou o resgate baseado na agenda dos ministros. Diante da hecatombe digital do tribunal superior, nos parece que, no pior cenário, somente as lawtechs de dados, analytics e jurimetria serão capazes de resgatar a corte do Hades e restaurar seus dados; afinal, são elas que, a trancos e barrancos, crawlearam os sistemas, quebraram os captchas e recaptchas, e criaram bases de dados que funcionam como espelhos dos tribunais – aí incluído o STJ. E mais. São elas as únicas capazes de restaurar grande parte de dados potencialmente perdidos no ataque.

Que o incidente de segurança ressignifique o princípio da publicidade, tão machucado por sucessivas resoluções do CNJ que hermetizaram gradativamente os dados da Justiça em um paradoxo insano no qual processos em autos digitais são mais difíceis de acessar que processos físicos. Nas palavras do filósofo alemão Karl Jaspers, a causa é cega e necessária, mas a culpa vê claramente e é livre; a Justiça aberta parece ser o único caminho para o Poder Judiciário brasileiro.

Daniel Becker é advogado e diretor de Novas Tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA). Natasha Rojtenberg é advogada de resolução de disputas, com experiência nas áreas de Direito Civil e Público.

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