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Nos países desenvolvidos, os hospitais universitários representam o que há de melhor em recursos humanos e tecnológicos no cuidado da saúde da população, especialmente, mas não exclusivamente, voltados para atendimentos especializados e de alta complexidade. São centros de excelência integrados aos demais componentes do sistema de saúde, responsáveis não somente pela assistência médica, mas também pela formação de profissionais de saúde altamente capacitados e pela geração de pesquisa científica que, em última análise, leva ao descobrimento de novos métodos diagnósticos e ao desenvolvimento de novos tratamentos. São hospitais de grande porte – muitos dos que tive oportunidade de conhecer – ocupando áreas equivalentes à de um bairro de uma cidade, com autonomia gerencial que garante administrações profissionais, ágeis e menos suscetíveis às intempéries sócio-econômicas e político-partidárias.

O Sistema Único de Saúde (SUS), instituído no Brasil pela Constituição de 1988, é um modelo gerencial que não encontra similar em qualquer outro país do mundo. Entre as características que o distingue dos demais, destaca-se a "universalidade", que garante a qualquer cidadão brasileiro acesso a assistência à saúde sem qualquer custo, e a "descentralização", que municipaliza a gestão dos recursos. Em agosto de 2004, a Portaria n.º 1.702 do Ministério da Saúde criou o Programa de Reestruturação dos Hospitais de Ensino no âmbito do SUS, caracterizando-as para fins de certificação como "...importantes espaços de referência da atenção à saúde para a alta complexidade, para a formação de profissionais de saúde e para o desenvolvimento tecnológico e científico da saúde". Por outro lado, a mesma portaria estabelece "...a transferência de recursos financeiros para estas instituições mediante a produção de serviços".

Infelizmente, na vida real esse modelo transformou os hospitais universitários em instituições assistencialistas, sobrecarregadas com atenção primária à saúde que deveria estar sendo promovida por outros integrantes do sistema. Ao desviar estas instituições de seu norte, este modelo tem provocado importantes efeitos colaterais, como o desestímulo à carreira acadêmica, queda na qualidade do ensino médico e na formação de novos profissionais de saúde, e comprometimento das iniciativas de pesquisa científica, tão fundamental para um país que sonha em ser desenvolvido. Este fenômeno de "SUSialização dos hospitais universitários brasileiros" reduz o importante papel destas instituições ao de meras prestadoras de serviço, com seus gerentes preocupados muito mais com a geração de recursos e com a luta diária pela busca de minguadas verbas pagas pelos gestores, do que com a promoção e o desenvolvimento de recursos humanos, científicos e tecnológicos. A luta pela sobrevivência diária cria ainda uma perversa relação de dependência com o gestor, sujeita a toda sorte de humores pessoais e influências político-partidária.

Há 20 anos percorro quase diariamente os corredores do Hospital de Clínicas (HC), inicialmente como estudante, depois como residente, e atualmente como médico e professor. Sou uma das testemunhas da "SUSialização" do nosso HC, que a exemplo de outras instituições federais, é refém de crises que se sucedem numa freqüência cada vez maior e que parecem nunca ter fim. As crises atraem os holofotes da mídia, que acerta ao relatar os inúmeros problemas vividos no cotidiano do hospital, mas erra ao colocá-lo na condição de réu, quando na verdade ele é a vítima. Há poucos dias o HC foi vítima de mais uma greve que, na ânsia de recuperar perdas salariais, defendeu a manutenção do status quo que premia a ineficiência e a incompetência, confundindo a população com frases feitas e desconectadas da realidade, impedindo o debate isento de ideologias que conduziria a soluções concretas para os problemas.

Soluções existem e com pequeno esforço podem ser encontradas mais perto do que imaginamos. Se olharmos para o sul, temos como modelo o HC de Porto Alegre, que, diferentemente dos outros HCs, é uma empresa pública de direito privado, com autonomia administrativa, criado através de lei própria, integrado a rede de hospitais universitários do Ministério da Educação e conveniado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Que tal compararmos os números de lá com os de cá? Que tal compararmos a qualidade de assistência, ensino e pesquisa? Que tal compararmos as crises vividas por uma e por outra instituição? Olhando para o norte vemos o famoso Incor, ligado a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com 80% de atendimentos a pacientes do SUS realizados com a mesma qualidade atestada por presidentes, governadores e empresários que não hesitam em correr para lá quando necessitam. Por que não podemos copiar esse modelo administrativo? A quem interessa manter o HC neste estado de crônica mendicância e penúria? Sonho com o dia que um político ou grande empresário do nosso estado e da nossa cidade procurará o HC para tratar de seus problemas de saúde. Se este dia chegar, o HC estará sendo administrado de modo ágil e independente e a população economicamente desfavorecida se beneficiará da mesma qualidade de atendimento que a parcela com maior poder aquisitivo é capaz de encontrar.

César Luiz Boguszewski é professor adjunto de endocrinologia da UFPR e chefe do Serviço de Endocrinologia do HC/UFPR (SEMPR).

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