| Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

A violência diária faz muitas vítimas: umas feridas por armamentos, outras sufocadas pelo medo, nas ruas e em casa. As causas da escalada brutal nos números de assaltos e tiroteios são várias. Elas vão da expansão do tráfico de drogas à entrada descontrolada de armas no país, passando pela crise econômica e a falta de autoridade dos que deveriam dar bons exemplos.

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Se antes eram os grandes hospitais públicos que tinham de se adaptar para receber os baleados na guerra urbana, hoje são os postos de saúde que começam a ter de encarar a realidade, treinando profissionais para lidar com ferimentos por balas de fuzis. A pressão é grande na missão de salvar vidas em ambientes que não foram equipados para a batalha.

Com a triste experiência no currículo, o Rio de Janeiro virou referência para médicos estrangeiros que querem aprender com a rotina de uma guerra. A cidade também foi escolhida pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha para receber um curso em que professores municipais são orientados a se proteger melhor dos confrontos, que assustam e vitimam crianças e jovens. Com escolas fechadas, a educação sofre.

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O currículo do Rio é a expressão do currículo nacional

Porém, quando olhamos um sinal ou sintoma de alguma perturbação no indivíduo, não olhamos apenas para esse sinal, mas para o organismo como um todo, porque o adoecimento é por inteiro e não só em uma parte. Podemos dizer que o Rio de Janeiro está com uma grande ferida na perna, mas os demais estados apresentam também graves perturbações como a violência no campo, o desmatamento, a agressiva atuação dos especuladores na Amazônia. Não é apenas um caso de falência local, mas de um modelo de sociedade pautado na exploração da força produtiva e da concentração de renda, e isso afeta o Brasil inteiro. A cidade do Rio, como sempre, é a vitrine do processo nacional e está purgando toda essa sujeira e contradição.

O currículo do Rio é a expressão do currículo nacional. É como se disséssemos que o problema das pernas inchadas de alguém é só das pernas, quando na verdade o fenômeno de instabilidade circulatória é do organismo inteiro; apenas ficou mais evidente nas pernas.

Além de ter de fugir das balas perdidas, o cidadão convive com o noticiário sobre a violência, de manhã à noite, nos noticiários da tevê e na internet, em tempo real. Alguns aplicativos mapeiam onde há tiroteios e montam rankings de assaltos. Há também os boatos e as falsas notícias nas redes sociais, que aumentam a tensão e sufocam as tentativas de uma cultura de paz.

Como a vitrine é o Rio, não mostram os índios correndo de tiroteios no Norte; os líderes de movimentos sociais sendo perseguidos e mortos por empreiteiros no Centro-Oeste; ou os imigrantes do Sul sofrendo por força da deterioração climática e da ação gananciosa do ser humano. São balas tão perdidas que nem citamos, não dão manchete e afetam diretamente os exploradores do poder.

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Leia também:O resgate da Cidade Maravilhosa (artigo de Carlos Alberto Di Franco, publicado em 14 de agosto de 2017)

Opinião da Gazeta:Caos na segurança do Rio serve de alerta a todo o país (editorial de 19 de julho de 2017)

Estressados e inseguros, os vizinhos das zonas de conflito adoecem, física e mentalmente. Sem falar naqueles que sobrevivem aos conflitos, mutilados e com traumas. A população vive no susto, trabalhando de olho na guerra e evitando o lazer noturno. Perdem a economia e o turismo, com os arranhões na imagem do Brasil. Mas a vida nos chama e o tempo ensina que não devemos nos acostumar com derrotas.

Quem deve virar o jogo de uma população que, embora sofrida, insiste em eleger governantes duvidosos como nas últimas eleições? Alguém se intitula superior e acima do bem e do mal para ser esse tal justiceiro? Ou vamos apostar no velho modelo de direita de prender e ameaçar quem perturbar a ordem, como se isso fosse somente cometido por mero capricho de um ou outro bandido?

Ao olharmos o caos mundial, fica evidente que, onde as forças de organização foram sempre frágeis, se instalam os aproveitadores e os processos daninhos de corrupção e violência.

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Não devemos entrar na fila daqueles que querem apenas olhar para fatos como num cinema, sem antes observar de cima tudo que está em curso. Apenas berrar que o Rio está entregue não significa nada além de assustar as pessoas e criar as condições adequadas para a instalação dos “sistemas de segurança” miliciados. Já vimos esse filme. Só que agora o choque de ordem necessário não é mais na favela, e sim na sociedade e no Congresso.

Paulo K. de Sá é coordenador da Faculdade de Medicina de Petrópolis (RJ).