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Os anos dourados da comunidade europeia foram extremamente favoráveis aos ingleses. Mesmo sem a moeda comum, a velha Albion funcionou nas últimas décadas como vitrine de uma Europa reinventada, tolerante, globalizada

A Inglaterra já atravessou o Canal da Mancha diversas vezes para salvar a Europa. Recusava ser ilha, pretendia ser continente. E conseguiu: as duas guerras mundiais e a Guerra Fria no século 20 são a melhor prova de uma superação existencial e geográfica. Na madrugada desta sexta-feira, em Bruxelas, o Reino Unido voltou atrás – preferiu ser ísola, apostou no isolamento. E contrariando os 17 membros da Eurolândia somados a seis outros parceiros da União Europeia que a ela pretendem aderir, reprovou a proposta de um tratado que reforçará a disciplina fiscal e regulará o mercado financeiro.

Ficou sozinha graças ao premiê David Cameron, jovem na aparência e jurássico na alma. Este descendente puro-sangue de Margareth Tatcher não é apenas um membro do Partido Conservador (Nicolas Sarkozy e Angela Merkel teoricamente também o seriam), nem apenas um empedernido eurocético tal como sua mãe espiritual e a maioria de seus correligionários.

Cameron é a ponta de lança do Tea Party no outro lado do Atlântico. Seu antiestatismo, sua cega submissão aos mercados em geral e ao financeiro em particular, portanto, ao insaciável apetite da City (a Wall Street londrina), o converteram num clone do que de pior foi produzido pela política norte-americana desde o macartismo.

A proximidade de Cameron com o tubarão da mídia, Rupert Murdoch, não é casual. Entre os dois há laços que transcendem a simples convivência imprensa-estado. Mais do que parceiros, cúmplices. Detestam os imigrantes, adoram fronteiras fechadas, abominas códigos e regulamentos.

O terremoto que está sacudindo a União Europeia foi a oportunidade encontrada por Cameron para escapar da marginalização a qual se condenou. O protagonismo afinal conquistado numa hora tão complicada é uma negação das melhores tradições da política externa e da cultura britânicas.

Opor-se neste momento ao resgate do projeto europeu é um tiro no pé. Os anos dourados da comunidade europeia foram extremamente favoráveis aos ingleses. Mesmo sem a moeda comum, a velha Albion funcionou nas últimas décadas como vitrine de uma Europa reinventada, tolerante, globalizada. O Eurostar, o trem-bala submarino que liga a ilha ao continente, não é apenas uma façanha de engenharia, é um monumento à interdependência do mundo contemporâneo.

O ceticismo antieuropeu até agora parecia mero maneirismo, não muito diferente da famosa fleugma britânica. O pavor ante a reunificação alemã e agora este despeitado mau humor perante o formidável empenho da dupla Markozy (Merkel+Sarkozy) para salvar a mais importante experiência federativa da história da humanidade, colocam Cameron e sua gangue isolacionista na galeria dos líderes mais detestados.

O legendário Winston Churchill pertencia ao mesmo partido de Cameron, estava distante – um antípoda – do que hoje designaríamos como progressismo. Poderia ter se composto com Hitler e com ele ter dividido a Europa. Optou por enfrentar a besta nazifascista, prometeu ao seu povo sangue, suor e lágrimas e salvou a Europa. Era um estadista, herdeiro da tradição dos reis-filósofos, David Cameron é um político que não enxerga um palmo além das próximas eleições e ignora um dos versos mais sublimes da literatura inglesa: "Nenhum homem é uma ilha, cada um é uma partícula do continente. Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída..." (John Donne, 1572-1631).

Num ano sem fim de ano, exauridos pela fragmentação e pela velocidade, um suspiro de alívio: a Europa escapou do abismo. Nós com ela.

Alberto Dines é jornalista.

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