| Foto: Felipe Lima

A recente concessão do Prêmio Nobel da Paz, o mais cobiçado galardão das relações internacionais, à Campanha Internacional para Abolir Armas Nucleares (Ican, na sigla em inglês), obscuro coletivo de ONGs plurinacionais e ativistas do desarmamento nuclear, teria, no entendimento de reiterados críticos, pecado tanto pelo primarismo da intenção quanto pela ingenuidade do gesto. Ao lancetar a mais cruel das questões mundiais contemporâneas, o esforço em banir armas nucleares, máxime em momento de tamanha gravidade com a escalada da crise na Península da Coreia, a escolha da Academia de Oslo por certo não merece reprovação. No entanto, ao destinar o prêmio a conglomerado de associações civis difusas, notoriamente impotentes diante da corrida armamentista que solapa a segurança coletiva, o gesto poderia parecer inócuo, banalizado pelo despropósito, sem a contundência e o pragmatismo que têm caracterizado prêmios precedentes.

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A luta contra a proliferação nuclear, seja em seu matiz vertical (de mais ogivas, direcionado às superpotências), seja em seu matiz horizontal (de mais países com bomba atômica, com foco nos afoitos periféricos conhecidos), foi sempre esforço fadado ao fracasso. Por meio do direito internacional e da diplomacia multilateral pouco ou nada se conseguiu. Depois, foi a política da dissuasão nuclear, com a estratégia MAD (jargão militar para “mutual assured destruction”, ou “destruição mútua assegurada”), que conseguiu auferir algum progresso com a prevenção de uma apocalíptica Terceira Guerra Mundial. “Mad”, bem a propósito, significa “louco” em inglês popular, pois atacar o inimigo e destruí-lo implica também em ser atacado e destruído de forma incontinenti.

Se a dissuasão representou segurança coletiva por algum tempo, os riscos atuais seguem vertiginosos, mais difusos e incontroláveis

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Se a estratégia de dissuasão ou do terror representou segurança coletiva por algum tempo, fazendo supor que ataques nucleares estariam banidos, os riscos atuais seguem vertiginosos, mais difusos e incontroláveis, sem as claras balizas de pesos e contrapesos da Guerra Fria; riscos então com adversários conhecidos e previsíveis, aos quais Raymond Aron designava de “partenaires-adversaires”. Agora, quando se desenvolve capacidade nuclear e de enriquecimento de urânio na calada da noite, com mercado negro e delivery de mísseis balísticos, a par de ditaduras vorazes de poder e sem controle democrático, decerto que se está em realidade vertiginosa, na qual esforços de pacifismo ingênuo de nada valem. Além disso, pela insanidade de serem os arsenais nucleares suficientes para destruir o planeta inúmeras vezes, tem-se a correta dimensão de riscos à humanidade, com mais de 15 mil bombas com nome e endereço, afora as de domicílio incerto e não sabido.

Em meio a 318 candidaturas, divididas entre vultos da política e da sociedade internacional, bem como de entidades civis que militam por distintas causas de benemerência e de relevância humanitária, a escolha do movimento representado pelo Ican, sigla-trocadilho esperançosa em inglês (“I can”, “eu posso”), foi por certo peculiar em diversos prismas. Primeiro, por não se direcionar a uma única entidade. Ainda, em outro viés, tratou-se de simbologia compatível com a atualidade, em que não são apenas atores tradicionais, como Estados e organizações internacionais nos moldes da ONU e da Agência Internacional de Energia Atômica, que devem ter voz ativa na agenda do desarmamento, mas também a sociedade civil. De resto, sabe-se que a ingerência de grupos de pressão tem crescente peso político; eles estão cada vez mais atuantes e incisivos, como claramente vimos na tutela do meio ambiente e na luta contra o aquecimento global. Cumpre assinalar que a tradição e o prestígio do Prêmio Nobel forjaram-se não no imediatismo de suas escolhas, mas essencialmente por representarem expressões inelutáveis da opinião pública internacional, com suas mensagens diretas ou não. Afinal, não é a sociedade civil quem governa.

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Por último, não se pode esquecer que a escolha do Ican para o Nobel da Paz, que pode parecer insólita diante do caráter irredutível de alguns beócios poderosos, tem a ver com a própria gênese do prêmio, como magnífica alusão e mensagem de simbologia histórica e alerta à humanidade, a partir da vida e da obra de seu mentor: o químico sueco Alfred Nobel, que pretendia a ciência sempre a bem da humanidade, mas que desiludiu-se após ter visto seus inventos destinados à engenharia e à construção civil transformados em devastadoras armas de guerra, da dinamite à nitroglicerina. Pouco mais tarde, também a energia nuclear seria originalmente concebida para o uso pacífico. Diz a história que dessa desilusão do ilustre e rico cientista é que teria nascido a ideia do prêmio que leva seu nome, financiado com prodigiosa herança. A ingenuidade como virtude sempre foi um traço notável da ciência e dos seus.

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Jorge Fontoura é advogado e professor.