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O conflito recente no Oriente Médio faz reabrir velhas e surradas análises eivadas de equívocos, parciais e maniqueístas. Certos pensadores que se pretendem dialéticos mostram-se incapazes de encontrar a unidade dos contrários, base analítica da busca da negação, e entram no fácil caminho da dicotomia entre o bem e o mal, tratando como se fossem oposições o que nem ao menos é dialética mecanicista. Outros, titulados historiadores, revelam desprezo pela história e a reduzem a um conjunto malfeito de efemérides, às vezes até ordenadas cronologicamente para dar certa impressão de capricho contextual.

Fosse um leigo a discorrer sobre a "história" do conflito, desde sua gênese, ainda seria admissível a ignorância, embora lamentável. Mas, quando se trata de um profissional da área que se dispõe a explicar um fato a partir de uma história sem passado, é inaceitável. Eis que nos deparamos, alhures, com análise plena de erros, sugerindo que não estão ali por acaso ou por descuido. Análise na qual tudo se justifica para "um lado", descrito como origem natural do outro: sou o que sou por culpa do outro e não tenho responsabilidade alguma em sê-lo.

"Um lado" bondoso, caridoso, social, humano, assistencial e deificado. O outro, malévolo, demoníaco, desumano. Esta história tem milênios. E é porque tudo se justifica para um e tudo se condena para outro que se pratica um outro tipo de terrorismo: o do preconceito. Este que se esconde sob a máscara dos que não assumem suas faces. Nada justifica, de "um lado" e de outro, a morte de inocentes. Por este motivo é também necessário questionar, como um historiador deve fazer, que outros fatores se encontram impregnados neste conflito.

Acobertar e aceitar atitudes, omitir informações, deturpar a história, não são atividades que competem a um historiador. Por esta razão, a humanidade orgulha-se dos seus grandes historiadores, pois eles são a garantia do registro de um passado que é necessário expor sem julgamentos pré-concebidos. Mas encontramos análises que, a pretexto de revelarem a história, primam pela quantidade de inverdades, distorções, exageros, omissões, confusões e mitos. Os leitores certamente merecem informações precisas e corretas para melhor compreensão a respeito do conflito do Oriente Médio. As análises não revelam, por exemplo, que na Guerra dos Seis Dias, em 1967, não houve expulsão de palestinos. Foram 325 mil cidadãos jordanianos que ali viviam e fugiram para outra parte da Jordânia a fim de não serem atingidos pelo fogo cruzado da guerra. A Organização pela Libertação da Palestina (OLP) não foi fundada no exílio após a ocupação em 1967. Ela foi fundada em 1964, e seu objetivo, conforme rezava o caput de sua carta, era a "destruição do Estado de Israel" e não a desocupação de um território que só seria ocupado três anos mais tarde. Em 1970 a Jordânia matou e expulsou milhares de palestinos de seu território depois que Arafat tentou destituir o rei Hussein e tomar o poder.

No Líbano, a OLP tinha uma força de 15 mil a 18 mil membros estacionados na fronteira, atacando com morteiros e mísseis Katyiucha e contava com cinco mil a seis mil mercenários estrangeiros vindos da Líbia, Iraque, Sri Lanka, Chade, Moçambique e outros países. Às vezes chega-se a ler informações tão equivocadas que colocam em dúvida a própria finalidade do texto. Por exemplo, existem alguns analistas que afirmam que em junho de 1982 os israelenses provocam a maior mortandade de civis desde a Segunda Grande Guerra, aí incluso os 2.700 palestinos mortos nos campos de refugiados de Sabra a Chatila. Entretanto, sabe-se que os maiores morticínios, após a 2.ª Grande Guerra, só para citar os principais, foram o do Cambodja (em que Pot Pol matou mais de 2 milhões de pessoas), as guerras do Vietnã e de Biafra, na África, entre as décadas 60/70 (com mais de um milhão de mortos cada uma) e, mais recentemente, a Guerra dos Bálcãs – Kosovo, Bósnia e Croácia – (com 200 mil mortos) e a da Chechênia (com 150 mil mortos).

A população atual do Líbano é de 3,6 milhões de habitantes. A maior mortandade no Líbano foi causada pela própria guerra civil, um conflito interno que se iniciou em abril de 1975 e com a OLP, xiitas, sunitas, drusos e a Síria de um lado, contra cristãos maronitas e setores da direita do outro, matando 150 mil pessoas.

Em relação a Sabra e Chatila as estimativas de mortos variam de 300 a 500, segundo a polícia libanesa. De todas as aldeias libanesas que sofreram massacres, as únicas que ficaram conhecidas são as de Sabra e Chatila, em 1982. Entretanto, em maio de 1985, houve novo massacre em Shatila e em Burj-el Baranjê quando muçulmanos atacaram os acampamentos. Segundo a ONU, houve 635 mortos e 2.500 feridos. E durante uma batalha de dois anos entre a milícia xiita Amal – respaldada pelo governo sírio – e a OLP, foram registrados mais de dois mil mortos, incluindo muitos civis. Nada justifica tantas mortes. Mas, nada justifica a ignorância de que as mesmas tenham ocorrido.

Quanto ao Hezbolah, é necessária muita ingenuidade ou má-fé para negar que o mesmo foi criado, financiado e armado pelo Irã. Para angariar simpatia da população libanesa, muçulmana, sempre empregou como estratégia a expulsão dos israelenses do Sul do Líbano. Porém, entre seus objetivos, sempre estiveram a conquista do poder no Líbano e a eliminação de Israel. Aliás, Nasrallah, seu líder, nunca fez segredo disso. Quando atacou a embaixada dos Estados Unidos em 23 de outubro de 1983, não deixou cerca de 60 mortos, pois os dois atentados-suicidas contra a força multinacional de interposição fizeram 248 mortes de americanos e 58 mortes de franceses.

A imprensa tem informado que o Hezbollah tem usado civis libaneses como escudos e armazenado seu arsenal de 12 mil a 13 mil mísseis iranianos e sírios, sob as clínicas, escolas e mesquitas que constrói para a população que ele mesmo condena à morte ao usá-la como escudo protetor. Desde o ano de 2000, quando os israelenses se retiraram por vontade própria do Sul do Líbano, até a eclosão do atual conflito no dia 12 de julho passado, mais de 500 foguetes e mísseis caíram sobre a população civil israelense, matando, ferindo e causando grandes danos. No dia anterior, o Hezbolah invadiu Israel, matando oito soldados, ferindo outros e seqüestrando mais dois que ainda continuam em seu poder.

Todos os que temos famílias no Líbano e em Israel, e todos os que ainda se comovem pelos dramas e sofrimentos humanos, estamos estarrecidos. Entendemos, contudo, que a prática do preconceito, este terrorismo de gabinete, em nada colabora para desvendar as contradições que se expõem neste conflito. Se já conhecemos "um lado" da história, é justo conhecer o outro. E é mais justo ainda conhecê-los como são.

José Henrique de Faria é doutor em Administração pela USP, com pós-doutorado em Relações de Trabalho pela University of Michigan, ex-reitor da Universidade Federal do Paraná e diretor-geral da Unibrasil.

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