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Livro trata peça de Brecht como realidade histórica.
Livro trata peça de Brecht como realidade histórica.| Foto: Editora Contexto/Divulgação

Cabe à epistemologia como disciplina filosófica definir o que é ciência, investigar as ciências e suas metodologias e traçar limites entre ciência e pseudociência. Espera-se, portanto, dos autores de um livro que se propõe a elencar e criticar pseudociências alguma formação epistemológica. Não neste caso. Na apresentação que fazem de si próprios, fica claro que o segundo autor se dedica prioritariamente ao jornalismo científico e a primeira, apesar de microbiologista, há tempos também só se dedica à divulgação científica e atividades correlatas. Sua produção propriamente científica é pífia e já antiga. Contei no seu currículo Lattes apenas quatro artigos publicados na área de microbiologia, em dois deles somente como coautora. Seu título acadêmico mais alto é o de doutora (ou Ph.D, como ela relata no Lattes, embora a USP não confira esse título). Ela também não é pesquisadora do CNPq. Em suma, cientificamente e filosoficamente, os currículos não impressionam. Natalia ficou mais conhecida por emprestar sua voz (!) à politicamente conveniente histeria pandêmica do governo Dória. Sua presença era constante no Jornal da Cultura, onde se notabilizou por exacerbado e estridente alarmismo.

O que se segue não é bem uma resenha de Pasternak & Orsi, Quanta bobagem! (São Paulo: Contexto, 2023), mas reflexões suscitadas pela leitura do livro.

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Logo à página 10 da Introdução (refiro-me à paginação da edição para Kindle), os autores mencionam “os cardeais católicos que se recusavam a olhar pelo telescópio de Galileu e preferiam continuar acreditando na Bíblia – que dizia que o Sol gira em torno da Terra [...]”. A verdade é mais complexa e tem mais nuances que essa afirmação falsa e simplória.

Embora Galileu não tenha inventado o telescópio (mas o holandês especialista em lentes Hans Lippershey em 1608), ele o aperfeiçoou e fez dele o bom uso que o levou às descobertas revolucionárias relatadas em Sidereus Nuncius de 1610 – onde, a propósito, não se questiona o modelo geocêntrico, discussão que virá depois. Os jesuítas do Colégio Romano, que eram matemáticos e cientistas (os jesuítas têm históricos vínculos com a ciência), certamente olharam pelo telescópio de Galileu. A recusa relatada no livro é uma cena famosa da peça de Brecht, A Vida de Galileu, mas não consta que tenha sido real. Sidereus Nuncius teve licença eclesiástica para publicação e os matemáticos do Colégio Romano foram entusiastas em sua divulgação. Porém, nada que eles pudessem ter visto através do telescópio seria capaz de lhes mostrar, ou a Galileu, que era a Terra que girava em torno do Sol, não o contrário.

Mais do que ninguém, Galileu sabia que não há movimento absoluto, pois é dele o “princípio de relatividade” que afirma exatamente isso. Do ponto de vista terrestre, a Terra está parada e o Sol, todos os planetas e a esfera celeste giram em torno dela. Esse referencial é muito ruim, e foi disso que Galileu se deu conta, mas não é “errado”. Pode-se demonstrar matematicamente que com suficientes arranjos ad hoc o sistema ptolomaico, geocêntrico, pode descrever corretamente todos os movimentos planetários. Incidentalmente, isso contraria a afirmação dos autores à página 33: “[...] claro, o que está se movendo é a Terra”. Por isso, o sistema ptolomaico durou tanto tempo e foi tão útil. A Igreja nunca proibiu Galileu de usar o heliocentrismo como hipótese de trabalho, só de admiti-lo como verdadeiro; o que, a rigor, ele não é. A mudança de um sistema a outro não é uma questão de verdade, mas de conveniência. Sendo a massa gravitacional do Sol muito maior que a dos planetas, faz mais sentido colocar no Sol o centro do sistema de referência para a descrição da dinâmica do sistema solar. Isso possibilitou as descobertas de Kepler e a sublime síntese teórica de Newton.

Se se leva em consideração que a Igreja estava à época enfrentando a reforma protestante e a Europa mergulhada em guerras religiosas, é bastante compreensível que Roma não tivesse querido botar mais lenha na fogueira doutrinária promovendo releituras bíblicas baseadas em conveniências matemáticas.

Mas voltando ao telescópio de Galileu. Por que os padres do Colégio Romano deveriam acreditar que aquilo que ele mostrava era real? Aliás, nem Galileu, que não conhecia óptica o suficiente, poderia estar certo disso. Não poderiam as “estrelas medicéas” (os satélites de Júpiter), as manchas solares ou as montanhas da Lua que Galileu tinha visto serem apenas efeitos ópticos? O telescópio galileano era bastante primitivo, pequeno e cheio de distorções. O filósofo da ciência Paul Feyerabend em seu livro Contra o Método arguiu que se Galileu tivesse seguido à risca os ditames do racionalismo crítico, ele não poderia ter abraçado o heliocentrismo. Antes que teimosos fundamentalistas, os jesuítas eram cientistas que contestaram Galileu cientificamente, arguindo, por exemplo, que se a Terra se movesse nós deveríamos observar paralaxes estelares – deslocamentos aparentes – que não observamos. Galileu nunca respondeu a contento essa crítica e sua “prova” mais séria do movimento terrestre, as marés, está errada, as marés não são produzidas pelo movimento da Terra, mas pela atração gravitacional da Lua e do Sol sobre as massas oceânicas.

Enfim, querer opor o “saudável empirismo” galileano ao “obscurantismo fundamentalista” religioso é uma falsificação histórica (cf. Galileo in Rome, W. R. Shea & M. Artigas, Oxford University Press, 2003).

2

Parece-me que os autores desconhecem o significado da palavra “lógica”. À pag. 10 eles escrevem: “[...] as ferramentas lógicas da ciência – confiança nos sentidos, indução e dedução”. Das três, só a dedução é uma ferramenta propriamente lógica. Não existe uma “lógica indutiva” e certamente confiança nos sentido não conta como lógica, mas apenas bom senso empirista. À pag. 23, eles se referem à “lógica por trás de aceitar o que se vê pelo telescópio”. Não só isso não é “lógico” como nem é razoável antes de se questionar a fidedignidade do telescópio. À pag. 60 há uma referência esdrúxula a uma suposta “lógica homeopática”.

A Lógica é uma ciência muito antiga, existe desde Aristóteles, e apesar de suas múltipla encarnações pode-se defini-la algo vagamente como a ciência que estuda os modos de se inferir verdades a partir de verdades. Inferências são argumentos pelos quais obtêm-se conclusões a partir de pressupostos; inferências logicamente válidas são aquelas cujas conclusões são necessariamente verdadeiras se os pressupostos forem verdadeiros. Podem-se concluir verdades de premissas falsas por argumentos logicamente válidos, só não se pode concluir validamente falsidades a partir de verdades. A lógica só garante a preservação da verdade, não a sua obtenção.

Todos os argumentos lógicos são dedutivos. Argumentos indutivos pretendem inferir verdades universais, por exemplo, leis físicas, de pressupostos particulares, por exemplo, fatos observados. Há boas e más estratégias indutivas, mas não há uma lógica indutiva que nos garanta como obter verdades universais a partir de pressupostos particulares. Nem testes randomizados duplo-cego controlados têm esse poder. Contrariamente ao que creem os autores, a metodologia científica não é baseada apenas em observação cuidadosa, dedução e indução. Frequentemente o cientista simplesmente adivinha leis e princípios e torce para que a observação lhe dê razão. Como dizia Feyerabend, anything goes. O grande físico Richard Feynman resumia o método científico em observar, adivinhar a lei, deduzir suas consequências observáveis e verificar se elas são de fato observadas. Se sim, ótimo; se não, repita o procedimento. Em ciência, a imaginação é tão importante quanto a lógica e a observação.

Há outros erros conceituais referentes à Lógica no texto. À pag. 12 define-se “falácias” como “estilos inválidos de argumentação que tendem a produzir conclusões equivocadas”. O que caracteriza a falácia é a invalidez da argumentação, não a falsidade da conclusão. Pode-se falaciosamente concluir qualquer coisa, verdadeira ou falsa. Os autores dão como exemplo de falácia a afirmação do consequente, assim definida “a falácia de inferir uma causa única a partir de um efeito que pode ter várias causas”. A definição é incorreta. A afirmação do consequente é a falácia que do pressuposto “se isso, então aquilo” conclui “se aquilo, então isso”. O erro está em inverter a relação de consequência lógica e não tem nada a ver com causalidade. Há um exemplo um pouco triste de um erro do gênero no raciocínio da criança desta história: o menino pergunta à mãe se pode ir ao cinema. A mãe responde que se ele não fizer a lição não poderá ir. O menino faz a lição e se prepara para ir ao cinema. A mãe não deixa. Ela pode ter sido cruel, mas não foi ilógica; quem cometeu erro lógico foi o menino, precisamente a falácia da afirmação do consequente. A mãe disse que se ele não fizesse a lição, não poderia ir ao cinema, que é equivalente a dizer que se fosse ao cinema, então teria feito a lição; ele concluiu, erroneamente, que se fizesse a lição poderia ir ao cinema. Para a mãe, fazer a lição era condição necessária da ida ao cinema, mas não suficiente.

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Ao autores têm razão quando apontam os males e as mortes que as pseudociências podem causar, mas me surpreende que não tenham mencionado a mais letal delas, responsável por 100 milhões de mortes em pouco mais de um século de prática, o marxismo.

Para os seus adeptos, o marxismo não é apenas uma ideologia ou uma “filosofia”, mas uma ciência com método próprio, o materialismo dialético, que a Wikipedia brasileira apresenta como simultaneamente “concepção filosófica e método científico”. Essa pretensão foi duramente criticada, como sabemos, pelo filósofo Karl Popper. O marxismo acredita em “leis” históricas, como esta que diz que “o modo de produção capitalista produz, com a inexorabilidade de uma lei natural, a sua própria negação” (O Capital, cap. 32), assim como em “forças” que agem na história, as famigeradas lutas de classes. O materialismo dialético tem “leis” que lembram muito aquelas da homeopatia mencionadas pelos autores. Entre elas a “lei da unidade e conflito dos opostos”, a “lei da negação da negação” e a “lei da passagem de mudanças quantitativas em mudanças qualitativas”, que, segundo Engels, valem também na natureza (cf. Dialética da Natureza). Um exemplo dessa última lei seriam as mudanças de estado, o aumento quantitativo da temperatura da água a leva a um novo estado qualitativo, o vapor. Para que termodinâmica quando se tem o marxismo, não é mesmo?

Uma pesquisa rápida em departamentos de filosofia e ciências sociais, no Brasil e alhures, constataria uma confortável maioria de adeptos dessa pseudociência cuja produção acadêmica se resume a enquadrar as realidades políticas, sociais, econômicas e culturais estudadas no figurino da “ciência” marxista, inventada quase dois séculos atrás e sistematicamente contrariada pelos fatos. Mais gente do que a soma dos homeopatas e psicanalistas e muito mais perigosa.

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Outro tema candente que os autores evitam é o uso político da ciência, contrariando normas e práticas da própria ciência, como se viu na recente pandemia de covid-19.

Quando a pandemia se instalou, os governos mundiais, como se sob ordem unida, sacramentaram quatro verdades oficiais: (1) o agente infeccioso responsável pela doença tem origem natural; (2) não há medicação existente eficiente contra a doença; (3) a única forma de combater a disseminação viral é o isolamento social e (4) as vacinas desenvolvidas a toque de caixa são eficientes e seguras. Quaisquer questionamentos dessas “verdades”, que vinham não apenas do público leigo, mas de médicos e cientistas respeitáveis, suscitavam violentas reações das autoridades políticas, invariavelmente secundadas pelo grande consórcio de imprensa, pela administração de redes sociais e por supostas autoridades científicas, muitas delas com claros conflitos de interesse, incluindo participação em conselho consultivo de produtora de vacinas e suspeitas associações com o laboratório de Wuhan. “Terraplanista”, “negacionista” e “genocida” valiam como pontuação nos discursos dos autointitulados “defensores da ciência”, que recusavam qualquer debate respeitoso. Talvez não tenha havido antes na história mundial atitude mais anticientífica.

Do ponto de vista da saudável dúvida sistemática que o método científico propugna, as quatro “verdades” cheiravam muito mal, e pior ainda os métodos pouco científicos usados para defendê-las. Havia claras indicações de que o vírus não tinha origem natural, mas a mera menção desse fato podia ter consequências dolorosas a quem ousasse o atrevimento; havia médicos importantes que propugnavam protocolos de tratamento, que eram por isso “cancelados” e suas propostas sistematicamente rechaçadas sem a devida consideração e avaliação; havia dúvidas sobre a eficiência do lockdown global, uma estratégia nunca antes testada na história da humanidade nessa escala, e seus efeitos sobre a saúde mental das pessoas, a educação de crianças, jovens e adolescentes, a integridade do tecido social, a preservação da atividade econômica e a sanidade das ações políticas que eram asfixiadas tão pronto eram aventadas; havia alguma insegurança sobre vacinas desenvolvidas em prazo tão expedito por métodos tão originais que eram rechaçadas como puro obscurantismo. Não havia o menor espaço para qualquer discussão que contestasse qualquer das verdades oficiais.

Hoje, a Organização Mundial da Saúde contabiliza mais de uma dezena de milhões de mortes suplementares no período de 2020 e 2021. Parte creditável ao covid-19, mas não a maior parte. Milhões morreram que não deveriam ter morrido. De que morreram? Doenças geradas ou agravadas pelo isolamento? Efeitos não previstos de repetidas imunizações? Males físicos e psicológicos causados por desemprego? Falta de atendimento médico adequado em tempo hábil? Ao que tudo indica, pelo que está vindo à tona, o vírus patogênico foi mesmo produzido por manipulação genética em laboratório, protocolos médicos vilipendiados eram preferíveis à inação, o isolamento causou mais mal que bem e as vacinas se revelaram menos eficientes e seguras do que se alardeava.

Quando a política usa a ciência como mordaça não é a ciência que ganha, embora muitos cientistas e “amantes da ciência” venais possam ter tido bons lucros. Pena que os autores preferiram não tocar nesse assunto.

Jairo José da Silva é professor titular de matemática da UNESP e autor de "O que é e para que serve a matemática" (UNESP, 2023).

Conteúdo editado por:Bruna Frascolla Bloise
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