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No mês de novembro, um número expressivo de autores de Direito Eleitoral encontrou-se na cidade de Florianópolis, em evento promovido pela Academia Catarinense de Direito Eleitoral, pelo Instituto Paulista de Direito Eleitoral e pelo Instituto Paranaense de Direito Eleitoral. O objeto dos debates foi a proposta de reforma política apadrinhada pela OAB, que vem entoando o canto de se tratar da panaceia para os problemas da República, com ênfase ao combate à corrupção, por meio da proibição do financiamento privado por pessoas jurídicas das campanhas eleitorais e da votação em dois turnos.

Contudo, a atecnia do projeto inicia-se na sua redação, para desaguar em um modelo de financiamento que escassamente atenderá às necessidades da política brasileira. Além de possibilitar a cristalização do sistema de partidos já reinante, com a consequente inibição do surgimento de novas forças políticas e da condução ao ostracismo político dos minoritários existentes adredemente, preconiza-se a simples troca de dependência econômica dos partidos dos recursos privados pela de recursos públicos, além de se proibir a doação por todas as pessoas jurídicas, sem qualquer distinção. Olvida-se que a participação da sociedade civil por meio de doações para as campanhas também é um sinal de saúde da democracia, de envolvimento cidadão, além de ser uma forma legítima de participação política ativa na arena pública.

Nesta direção, a divisão dos recursos do Fundo Democrático de Campanhas previsto no projeto de lei permite a concentração e manutenção dos partidos já com assento na Câmara dos Deputados, uma vez que 75% serão divididos em face da composição da legislatura anterior (art. 18), afastando-se o financiamento daqueles partidos que tenham apenas representantes no Senado da República e gerando, assim, "classes" de cadeiras a serem conquistadas. E a teratologia prossegue ao despender apenas 16% do volume de recursos para as eleições presidenciais, sabidamente mais custosas pela vastidão territorial do país. O financiamento privado vaticinado não poderá ser em candidato determinado, mas ao Fundo, nem tampouco há qualquer benefício fiscal ou outra medida de fomento às doações de pessoas físicas, já tão exíguas.

O mesmo projeto ainda sugere uma alteração radical do sistema eleitoral, com consequências imprevisíveis. Tal elemento está totalmente atrelado ao modelo de financiamento que também é sugerido. São passos deveras grandes e muito repentinos para tamanha mudança de paradigma, tal qual está inscrito no projeto. A votação em dois turnos ressuscita o "voto esguicho", modalidade que fez naufragar a reforma de Assis Brasil ao permitir que, no segundo turno, na votação nominal dos candidatos, elejam-se os mais fracos representantes de um partido exatamente com os votos de seus adversários, implicando numa perda de qualidade da representação.

Há muitas dúvidas e lacunas no projeto existente, mas o que já se antevê, sem rastro de objeção, é o amesquinhamento do parlamento e o superdimensionamento da jurisprudência e do próprio Tribunal Superior Eleitoral. Isso fica claro quando lhe é outorgada, por exemplo, a iniciativa sobre os valores a serem previstos na lei orçamentária para gastos em uma eleição, sem qualquer parâmetro legal (art. 17), deixando ao alvedrio do Poder Judiciário o quanto será gasto de dinheiro público numa eleição. O funcionamento do fórum de controle social do Fundo Democrático de Campanhas também será "regrado por regimento definido pelo Tribunal Superior Eleitoral", num claro caso de delegação legislativa indevida.

Sobre o fórum social de controle do Fundo Democrático de Campanhas, o projeto prevê que este deverá ser gerido também por "entidades e organizações da sociedade civil regularmente constituídas que justifiquem interesse no monitoramento das eleições", sem afirmar com precisão quais são essas entidades com poder fiscalizatório ou quais os requisitos para que estas intervenham no fórum.

A cassação sumária do candidato, independentemente da existência de impacto sobre o pleito, sem qualquer obediência à proporcionalidade, é a pena que se impõe constantemente no texto, o que claramente não é a sanção que mais se adequa em um sistema que privilegia – ou deveria privilegiar – a soberania popular.

Ao fim, as alterações propostas aos procedimentos de participação popular são, quiçá, as mais conflitantes com este mesmo conceito. Surge a declaração de conformidade das assinaturas por três dirigentes de organizações legitimadas para a propositura da ação declaratória – um rol extremamente limitado de atores – gerando uma presunção de veracidade destas firmas. Em seu fecho, a proposta afasta o controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal de leis de iniciativa popular, excluindo-se aquela declarada pela maioria absoluta de seus membros.

Face a tantas objeções, não parece ser que a solução para o aperfeiçoamento do sistema político brasileiro esteja contida nas alterações propostas no projeto de lei da reforma política em debate. São medidas pouco condizentes com os princípios democráticos mais básicos, como a igualdade de oportunidades entre os competidores eleitorais e o pluralismo político, além de outorgar privilégios a determinados segmentos que não detêm legitimação popular para exercer as funções que o projeto lhes concede. Se o objetivo principal é o combate à corrupção, tal tarefa deve ser realizada embasando-se no Estado Democrático de Direito, e não à custa de direitos dos cidadãos, como se o fim justificasse os meios.

Contudo, mesmo com este projeto já tendo sido modificado diversas vezes desde a sua versão original, e sem a abertura pública do debate, segue a coleta de assinaturas, provavelmente sem alertar o cidadão de boa fé, que deposita o seu apoio por meio do seu nome, sobre todas as consequências que podem surgir com a sua aprovação. Trata-se de um cheque em branco que está sendo assinado, utilizando-se de maneira totalmente inapropriada uma ferramenta tão democrática como é a iniciativa popular de projetos de lei.

Ana Claudia Santano é doutora e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca (Espanha). Marcelo Ramos Peregrino Ferreira, mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade de São Paulo, é presidente da Academia Catarinense de Direito Eleitoral.

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