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Urnas funerárias com as cinzas da democracia? Controvérsias sobre o voto eletrônico

O Congresso restabeleceu o voto impresso pela Lei 13.165, e o Supremo, novamente, suspendeu a aplicação em 2018, por liminar confirmada em 2020. (Foto: André Rodrigues/Gazeta do Povo)

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O Brasil é um caso único entre as grandes democracias. Foi um dos primeiros países a informatizar integralmente o voto, mas é um dos poucos que ainda confia todo o processo a um sistema eletrônico. Quase três décadas depois da estreia das urnas eletrônicas, muita gente se orgulha da velocidade da apuração, mas ainda tropeça na pergunta essencial: o eleitor pode realmente verificar o próprio voto?

Desde 1996, o eleitor brasileiro deposita sua fé em uma máquina. O voto é digitado, gravado e transmitido por software sob sigilo total. Nenhum papel, nenhuma recontagem física. O resultado sai em minutos e, com ele, uma dúvida que nunca se dissipou. O jurista Felipe Gimenez, Procurador do Estado do Mato Grosso do Sul e um dos autores do livro Sereis como Deuses, chama isso de “ato de fé tecnológica”. No capítulo “Urna virtual: a roupa nova do rei”, ele afirma que o modelo brasileiro transformou a confiança pública em crença religiosa. Para ele, a ausência de trilha física viola o princípio constitucional da publicidade dos atos estatais e afasta o cidadão da soberania popular. Sua metáfora é dura e precisa: o sistema faz o povo aplaudir a roupa invisível do rei, acreditando na segurança que não pode ver.

Entre os países do G20, nenhum adota modelo semelhante. A Alemanha aboliu as urnas eletrônicas em 2009, por decisão de sua Corte Constitucional, que considerou o sistema inconstitucional por não permitir verificação pública. França, Reino Unido, Canadá, Japão e Coreia do Sul mantêm o voto em papel, com contagem manual ou leitura óptica sob fiscalização pública. A Índia utiliza urnas eletrônicas com comprovante impresso, auditado por amostragem, decisão reafirmada pela Suprema Corte em 2024. A Holanda abandonou as máquinas eletrônicas em 2007 e voltou ao lápis vermelho e às cédulas manuais. Bangladesh (sim!) fez o mesmo em 2024, após problemas de confiança popular. O Brasil, portanto, está isolado, alinhado apenas ao Butão, um pequeno reino himalaio. É um contraste incômodo para uma das maiores democracias do mundo.

No Brasil, cada tentativa de ampliar a verificabilidade foi bloqueada, seja no Legislativo, seja no Judiciário. A Lei 12.034/2009 previa a impressão do voto, mas o STF declarou o dispositivo inconstitucional em 2013, alegando risco ao sigilo. Em 2015, o Congresso restabeleceu o voto impresso pela Lei 13.165, e o Supremo, novamente, suspendeu a aplicação em 2018, por liminar confirmada em 2020. Em 2021, a PEC 135/2019, conhecida como PEC do voto auditável, chegou ao Plenário da Câmara. A proposta previa que cada voto eletrônico fosse acompanhado de um registro físico depositado automaticamente em urna lacrada. O texto obteve 229 votos a favor e 218 contrários, insuficiente para aprovação.

No Brasil, cada tentativa de ampliar a verificabilidade foi bloqueada, seja no Legislativo, seja no Judiciário

Mas o episódio mais marcante não foi o resultado, e sim a atuação do então presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, que foi pessoalmente à Câmara dos Deputados e se reuniu com líderes partidários antes da votação. Em discurso público, afirmou que o voto impresso resolveria um problema que não existe e abriria caminho para fraudes. A fala, e sobretudo o gesto de um ministro do Supremo participando de articulações políticas, causaram desconforto até entre parlamentares governistas e oposicionistas. O senador Eduardo Girão (e vários outros parlamentares na mesma linha) acusou Barroso de interferência indevida. O ministro respondeu que apenas defendeu a democracia e o sistema que funciona. O efeito, porém, foi o oposto: quanto mais o TSE dizia que o sistema era infalível, mais parte da população passou a desconfiar da sua resistência à transparência.

Os Testes Públicos de Segurança realizados pelo TSE desde 2009 têm exposto fragilidades reais. Em 2017, peritos convidados conseguiram reconstruir parcialmente a ordem de votos a partir de registros internos. Em 2021, novos testes apontaram vulnerabilidades na transmissão dos boletins de urna. Embora o TSE tenha alegado ter corrigido as falhas, o próprio formato dos testes é limitado: trata-se de experimentos controlados, e não de auditorias independentes, públicas e replicáveis. Em 2024, um artigo técnico propôs um sistema de auditoria paralela, aberta e verificável, justamente para corrigir a ausência de independência no modelo brasileiro. O texto lembrou que o Brasil não adota o princípio de software-independence, adotado como norma internacional de segurança pelo NIST, nos Estados Unidos, o qual exige que o resultado de uma eleição possa ser verificado sem depender do próprio software que o produziu.

Desde 2022, o STF e o TSE passaram a enquadrar “campanhas de desinformação sobre o processo eleitoral” em inquéritos por “atos antidemocráticos e milícias digitais”. Parte dessas ações atingiu também pessoas e grupos que defendiam auditoria independente, ainda que sem incitar atos ilícitos. Na prática, a fronteira entre crítica técnica e discurso criminoso tornou-se nebulosa. Enquanto países como Alemanha, Índia, Canadá e Estados Unidos mantêm o debate público sobre auditoria eleitoral aberto a universidades e partidos, no Brasil, o simples questionamento do sistema pode ser interpretado como ameaça à democracia. Essa reação excessiva acabou intimidando a discussão legítima e alimentou justamente o que pretendia evitar: a desconfiança.

O mais recente capítulo dessa escalada foi o julgamento do “núcleo de desinformação” da “trama golpista” pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, que condenou sete pessoas usando uma tese relacionada a críticas sistemáticas às urnas eletrônicas como sendo crime contra o Estado Democrático de Direito. Na prática, para além de proteger o procedimento do sistema de votação como quase cláusula constitucional pétrea, o tribunal criou uma nova fronteira jurídica: o limite entre liberdade de crítica e crime de opinião.

Ao transformar a desconfiança em infração penal, o Supremo acabou reforçando a percepção de que o sistema eleitoral se blinda contra qualquer forma de questionamento e que, em vez de dissipar dúvidas, prefere punir quem as formula. O resultado é mais uma vez o contrário do esperado. Ao criminalizar a crítica, o próprio Estado amplia a sensação de opacidade e insegurança que deveria combater.

A confiança dos cidadãos no sistema de votação é hoje um dos indicadores mais precisos da saúde democrática de um país. Pesquisas recentes mostram que a legitimidade das eleições não depende apenas da lisura técnica do processo, mas, sobretudo, da percepção pública de justiça e transparência. Como observa Maarten Halff em Confidence in Elections and the Acceptance of Results (2015), “as eleições são o coração da democracia”, e o que as mantém batendo é a confiança coletiva de que cada voto conta.

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Estudos internacionais apontam que, quando a população acredita na integridade do sistema eleitoral, aumenta a participação política e a aceitação dos resultados, mesmo por parte dos derrotados (Mongrain, Unexpected Election Outcomes, Perceived Electoral Integrity and Democratic Trust, 2023). Por outro lado, quando há suspeitas de fraude ou interferência, a confiança se deteriora rapidamente, abrindo espaço para a polarização e o descrédito institucional (Birch, Confidence in Elections and the Acceptance of Results, 2010; Halff, 2015).

A relação entre confiança e democracia também passa pela estrutura das instituições eleitorais. Pesquisas comparativas indicam que autoridades independentes tendem a gerar maior satisfação com o funcionamento democrático e reduzem tensões pós-eleitorais, enquanto, em contextos de desconfiança institucional e percepção de corrupção, o sentimento democrático se enfraquece (Monsiváis-Carrillo, Perception of Electoral Integrity, Trust in Elections, and the Quality of Democracy in Latin America, 2022).

Com o avanço da tecnologia, a discussão se desloca para o voto eletrônico. Estudos recentes identificam que a confiança na tecnologia e nas instituições são os dois pilares que sustentam a aceitação social desses sistemas. Quando um desses pilares falha, seja por falta de comunicação eficiente com o público, seja por suspeitas de manipulação, a legitimidade do processo eleitoral é colocada em xeque. Para Van Daalen e Hoekstra, em The Right to Trust Your Vote (2024), “o direito de confiar em seu voto” depende da capacidade de o eleitor compreender e verificar a contagem.

Em síntese, a confiança eleitoral é o elo vital da democracia: nasce da combinação entre transparência, independência institucional e comunicação clara com os cidadãos. Quando essa confiança é abalada, o ato de votar perde sua força simbólica e seu poder de legitimar governos.

Em 20 de agosto de 2025, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou, por 14 votos a 12, um destaque no PLP 112/2021, novo Código Eleitoral, reintroduzindo o voto impresso auditável. O modelo prevê que a urna imprima automaticamente o voto, que o eleitor apenas visualiza, e o papel seja depositado em compartimento lacrado para auditoria por amostragem. A proposta ainda depende do Plenário e da Câmara, mas recoloca o Brasil no caminho da verificabilidade física, algo que as principais democracias já consideram indispensável.

A discussão sobre as urnas eletrônicas não é uma disputa partidária. É uma disputa sobre quem controla a confiança pública: o cidadão ou o Estado. A recusa reiterada em permitir formas simples e auditáveis de conferência faz crescer o abismo entre o eleitor e a instituição que apura o voto. O Brasil precisa decidir se quer confiar em fé ou em prova. Enquanto a transparência continuar sendo tratada como ameaça, a urna continuará simbolizando aquilo que a democracia brasileira tem de mais frágil. E é por isso que afirmo: a manter-se fechada de escrutínio público, a urna eletrônica pode se tornar, não num depósito de esperança democrática para o titular do poder, mas numa urna funerária que conterá as cinzas da democracia.

Zizi Martins é vice-presidente da ANED, membro fundadora e diretora da Lexum, presidente do Instituto Solidez e membro do IBDR. Advogada com mestrado em Direito Público e especializações em Direito Administrativo e Religioso, doutora em Educação, pós-doutora em Política, Comportamento e Mídia. Consultora e pesquisadora em gestão pública e liderança.

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