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Na história das leis, um fenômeno recorrente é o surgimento de um instituto para solucionar um problema específico, mas cuja função, com o tempo, é de tal forma desvirtuada que de remédio ele se transforma em veneno. É bem o que se dá com a substituição tributária, que veio para facilitar a arrecadação e reduzir a sonegação de tributos sobre o consumo, por meio da transferência da responsabilidade pelo recolhimento do imposto em uma (ou várias) etapa da cadeia de circulação de bens para outra, aquela com menor dispersão de agentes econômicos. Tome-se o caso de produtos industrializados por um reduzido número de fabricantes – veículos automotivos – em que, em vez de se apurar e recolher o tributo em cada etapa, até a venda ao consumidor final, concentra-se tudo isso no próprio fabricante, a partir de estimativa do preço a ser praticado na fase seguinte, na qual, dado o muito maior número de operadores, o risco de sonegação fiscal aumenta. Nessa concepção original, a substituição tributária foi aplicada a um grupo restrito de mercadorias: veículos, combustíveis, bebidas, fármacos. Todas com o atributo comum de sua concentração, na etapa industrial, em poucos fabricantes (os substitutos) e dispersão, na fase de distribuição, entre milhares de varejistas (os substituídos).

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Controverteu-se, à época da adoção da substituição tributária pelos estados, no início da década de 1990, se ela não padeceria de inconstitucionalidade, na medida em que conduzia, relativamente às operações ainda não realizadas nas etapas seguintes àquela em que se concentra o recolhimento, à exigência de tributo anteriormente ao próprio fato gerador deste. Mas essa questão acabou superada com a introdução do §7.º ao artigo 150 da Constituição Federal, o qual autorizou expressamente essa antecipação da exigência tributária. Restou, porém, o problema da base de cálculo: era preciso estimar o preço da operação ainda não havida, estimativa essa que, numa economia de mercado, raramente se conformaria ao preço real da operação. Daí a questão de saber se, dando-se a última operação ao consumidor por valor inferior ao estimado, o comerciante que a praticasse teria direito a reaver a diferença paga a maior, ou, no caso inverso, se o fisco poderia cobrar a diferença paga a menor. O STF entendeu, num primeiro momento, que não: o preço estimado seria definitivo, não havendo nem direito à restituição em prol do contribuinte, nem direito à cobrança da diferença pelo fisco. Com isso, as grandes discussões acerca da substituição tributária tinham sido, para o bem ou para o mal, equacionadas. Doravante, possíveis controvérsias se dariam em torno do preço estimado via margem de valor agregado (MVA), controvérsias que, em muitos casos, foram eliminadas por meio de diálogo entre o fisco e cada setor alcançado pela substituição tributária.

Quanto maior a carga tributária, tanto maior o estímulo à sonegação

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Mas o que deveria ser, como exposto, um regime excepcional passou a ter um alcance desmesurado. Impressionados com a produtividade arrecadatória da substituição tributária, os fiscos estaduais, tanto isoladamente como em conjunto (por meio do Confaz), desvirtuaram e distorceram esse instrumento, de três maneiras. Primeiro, ampliaram o número de setores sujeitos à substituição tributária, aumentando incessantemente a lista de produtos às quais ela se aplicaria. Segundo, passaram a utilizar a fixação da MVA como meio de aumento da carga tributária, e também de restrição ao comércio interestadual (com a chamada "MVA ajustada"), distanciando-se cada vez mais da realidade do mercado, o que se intensificou a partir da crise das finanças estaduais. Terceiro: sua aplicação às operações envolvendo empresas optantes pelo Simples Nacional praticamente excluiu grande parte do ICMS desse regime, o que se tentou conter, em 2014, mediante a inserção, na Lei do Simples Nacional (LC 123), de uma lista taxativa de mercadorias sujeitas à substituição tributária em operações com empresas de pequeno porte (EPPs) e microempresas (MEs).

Só que a tal lista taxativa praticamente abarca tudo que já vinha sendo submetido à substituição tributária: combustíveis e lubrificantes; energia elétrica; cigarros e outros produtos derivados do fumo; bebidas; óleos e azeites vegetais comestíveis; farinha de trigo e misturas de farinha de trigo; massas alimentícias; açúcares; produtos lácteos; carnes e suas preparações; preparações à base de cereais; chocolates; produtos de padaria e da indústria de bolachas e biscoitos; sorvetes e preparados para fabricação de sorvetes em máquinas; cafés e mates, seus extratos, essências e concentrados; preparações para molhos e molhos preparados; preparações de produtos vegetais; rações para animais domésticos; veículos automotivos e automotores, suas peças, componentes e acessórios; pneumáticos; câmaras de ar e protetores de borracha; medicamentos e outros produtos farmacêuticos para uso humano ou veterinário; cosméticos; produtos de perfumaria e de higiene pessoal; papéis; plásticos; canetas e malas; cimentos; cal e argamassas; produtos cerâmicos; vidros; obras de metal e plástico para construção; telhas e caixas d’água; tintas e vernizes; produtos eletrônicos, eletroeletrônicos e eletrodomésticos; fios, cabos e outros condutores; transformadores elétricos e reatores; disjuntores, interruptores e tomadas; isoladores, para-raios e lâmpadas; máquinas e aparelhos de ar condicionado; centrifugadores de uso doméstico; aparelhos e instrumentos de pesagem de uso doméstico; extintores; aparelhos ou máquinas de barbear; máquinas de cortar o cabelo ou de tosquiar; aparelhos de depilar, com motor elétrico incorporado; aquecedores elétricos de água para uso doméstico e termômetros; ferramentas; álcool etílico; sabões em pó e líquidos para roupas; detergentes; alvejantes; esponjas; palhas de aço e amaciantes de roupas; e venda de mercadorias pelo sistema porta a porta. Só isso!

Enfim, a substituição tributária, de um instrumento de uso excepcional, se transformou numa panaceia para as mazelas fiscais dos estados e num veneno para os comerciantes, especialmente para os enquadrados no Simples Nacional. Um efeito colateral disso, que seria irônico se não fosse trágico, foi o aumento do comércio ilegal de mercadorias sujeitas à substituição tributária. Comércio ilegal esse que já nasce no estado de origem (onde deveria haver a apuração e recolhimento pelo substituído) ou mesmo fora do país, e não prejudica apenas o estado de destino, mas principalmente os comerciantes que nele atuam regularmente e que, por força dessa concorrência desleal, acabam sendo expulsos do mercado. É o que tem sucedido, por exemplo, com o comércio varejista de vinhos no estado do Paraná, que, destroçado pelo contrabando, vai fechando as portas. Lição antiga que vem sendo ignorada por nossos (des)governantes: quanto maior a carga tributária, tanto maior o estímulo à sonegação.

Leia também: O futuro incerto da reforma tributária (editorial de 13 de dezembro de 2018)

Leia também: Reforma tributária e investimentos estrangeiros (artigo de Ricardo Castagna, publicado em 5 de junho de 2019)

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Mas também o Judiciário deu sua contribuição para agravar esse quadro. Como dito, o STF havia entendido que a diferença entre preço estimado e preço praticado na operação final não daria direito nem ao contribuinte nem ao fisco de postular num caso a restituição e no outro a cobrança da diferença de ICMS. Só que, em 2016, por ocasião do julgamento de uma outra ação direta, a corte mudou de posição (algo cada vez mais frequente): reconheceu em favor do contribuinte o direito à restituição, mas nada disse acerca do caso inverso, já que este não era objeto da ação. Assim, a partir da data daquele julgamento, ainda que sem efeitos retroativos (por força de modulação), os contribuintes puderam requerer, administrativa e judicialmente, a restituição do tributo pago a maior. Excelente notícia, não? Só que os estados, entendendo que o STF, ao não se manifestar sobre a situação contrária, tampouco a vedara, aproveitaram a oportunidade para estipular em suas legislações que teriam o poder de exigir o pagamento da diferença de ICMS entre o preço estimado e o preço efetivo da operação, quando este fosse maior. Alvo primordial da fiscalização relativa a essa diferença seriam justamente os que comparecessem com pedidos de restituição: cuidado com o que deseja, pois você pode ser credor em relação a um tipo de mercadoria e devedor em relação a outra. Armado, então, o palco para a multiplicação de conflitos e, com eles, de insegurança jurídica.

Diante de tudo isso, o que fazer? Em primeiríssimo lugar, refluir a substituição tributária a seu leito original, ou seja, reduzir ao mínimo o leque de mercadorias às quais se aplica. Nesse movimento, alguns estados, como Santa Catarina e Rio Grande do Sul, têm sido pioneiros. Paralelamente, suprimi-la inteiramente nas operações envolvendo empresas optantes pelo Simples Nacional. Por derradeiro, aperfeiçoar os mecanismos de calibração da MVA, o que certamente será muito mais fácil com um catálogo reduzido de itens sujeitos ao regime. Com isso, a discussão envolvendo diferenças entre o preço estimado e o preço efetivo da operação perderá forças. E, por fim, coibir qualquer uso extrafiscal da MVA em operações interestaduais.

Leonardo Sperb de Paola, advogado, é presidente do Instituto de Políticas Fiscais e Reforma Tributária.