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A enfermeira May Parsons administra a vacina Pfizer/BioNtech contra a Covid-19 em Margaret Keenan, 90 anos, na Inglaterra, em 8 de dezembro de 2020, tornando Keenan a primeira pessoa a receber a vacina no maior programa de imunização de todos os tempos.
A enfermeira May Parsons administra a vacina Pfizer/BioNtech contra a Covid-19 em Margaret Keenan, 90 anos, na Inglaterra, em 8 de dezembro de 2020, tornando Keenan a primeira pessoa a receber a vacina no maior programa de imunização de todos os tempos.| Foto: Jacob King/Pool/AFP

No início do próximo ano iniciaremos, no Brasil, o processo de vacinação contra o Sars-CoV-2, o novo coronavírus. Justo agora, no fim de 2020, as empresas estão finalizando a fase três do desenvolvimento destas vacinas, o último passo para que elas possam ser distribuídas e aplicadas na população.

Um tipo de vacina vem chamando bastante a atenção por causa de seu aparente ineditismo: as vacinas de RNA. Grosseiramente falando, a metodologia se baseia no uso do “RNA mensageiro”, ou simplesmente RNAm, que contém uma parte do código genético do novo coronavírus, para ensinar o sistema imunológico das pessoas a produzir as defesas contra o vírus. Durante o processo biológico normal, o RNA mensageiro, que é a molécula responsável por transportar a informação genética dos genes para fora do núcleo, recebe ajuda dos ribossomos para produzir as proteínas necessárias ao organismo.

Apesar de ser uma tecnologia que replica de forma precisa o papel biológico natural do RNAm, potencializando sua função e tornando-o uma arma contra a Covid-19, há uma série de desinformações que vêm ganhado espaço e levado muita gente a pensar que vacinas que se baseiam em pesquisas genéticas podem representar uma ameaça para a saúde pública. Como se quem fosse imunizado por vacinas de RNAm fosse se transformar em um zumbi ou mutante, ou até mesmo fosse “chipado”.

O conhecimento adquirido no desenvolvimento de outras vacinas com RNA mensageiro foi responsável, pelo menos em parte, pela agilidade no desenvolvimento das vacinas que começam a despontar hoje contra o coronavírus

Apesar de a utilização do RNAm como ferramenta no desenvolvimento de vacinas parecer algo novo, ele já foi usado anteriormente no desenvolvimento de outras vacinas – e sim, já foi testado amplamente em humanos. Existem pelo menos quatro doenças infecciosas para as quais o RNAm já foi usado: gripe, raiva, citomegalovírus e zika. É verdade que nenhuma delas chegou, ainda, ao mercado. Apesar disso, podemos dizer que o conhecimento adquirido no desenvolvimento destas outras vacinas foi responsável, pelo menos em parte, pela agilidade no desenvolvimento das vacinas que começam a despontar hoje contra o coronavírus.

Pfizer/BioNTech e Moderna são as empresas que estão utilizando o RNAm para o desenvolvimento destas vacinas. E como elas funcionam? Apesar de ser um processo tecnicamente bastante complexo e caro, a ideia é bem simples: o RNA injetado contém instruções para que o corpo do paciente fabrique parte de uma proteína do coronavírus, despertando assim uma reação imunológica. Ou seja, um RNAm contendo a informação genética para a produção da espícula (a característica do vírus para a qual queremos desenvolver a resposta imunológica) é envolto em uma gotícula de gordura e é injetado no organismo. Esta gotícula de gordura ajuda o RNAm a escapar do sistema imunológico e facilita que o RNAm entre na célula. A gotícula de gordura funciona como uma chave que permite que a informação genética do Sars-CoV-2 atravesse a membrana celular.

Uma vez no interior da célula, o RNAm se liga aos ribossomos e a maquinaria celular simplesmente desempenha o seu papel, que seria o de traduzir a informação contida naquele RNAm para uma proteína. No caso específico, depois que as informações do RNAm do Sars-CoV-2 forem assimiladas pelas células humanas, a mesma molécula que o vírus usa para invadir nossas células passará a ser produzida pelo corpo humano, mas sem a presença do vírus. Assim que a molécula (que é uma proteína) for produzida e reconhecida pelo organismo como não pertencente ao corpo humano, as células de defesa vão começar a desenvolver a resposta imunológica contra ela. O resultado será a produção de anticorpos específicos para esta proteína, gerando no organismo uma potencial defesa que seria suficiente para impedir uma futura infecção por este coronavírus (e torcemos para que estudos nos mostrem que esta proteção seja duradoura).

Vale destacar que a Moderna está desenvolvendo esta vacina em parceria com o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, que faz parte do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, o maior centro de pesquisa biomédica do mundo. A instituição tem em seu histórico a marca de ter financiado mais de 150 prêmios Nobel. Ter este instituto como avaliador e apoiador da pesquisa é uma boa indicação de que, apesar de estar sendo feita de forma rápida, a pesquisa está embasada em critérios éticos e científicos que estão entre os mais rigorosos do mundo.

Mas, se é assim, por que circulam boatos como os de que a vacina de RNAm alteraria o nosso DNA? Eles fazem algum sentido? Trata-se de mitos em torno do emprego do RNAm; sua presença nas células humanas não vai causar uma incorporação do seu material genético. A molécula de RNAm é uma molécula naturalmente bastante instável, tendo condições de ser utilizada para a produção apenas de algumas poucas cópias da proteína. Depois, ela é completamente degradada por uma maquinaria celular especificamente presente para esta finalidade.

A molécula de RNAm adicionada na vacina nem consegue entrar no núcleo, onde o DNA da célula se encontra. Como poderia, então, se incorporar a ele?

O RNA presente na vacina não tem nenhum outro componente que possa fazê-lo se ligar ao DNA celular dos seres humanos. As células não possuem mecanismos que permitam a incorporação de tais informações. E a molécula de RNAm adicionada nem consegue entrar no núcleo, onde o DNA da célula se encontra. Como poderia, então, se incorporar a ele? Além disso, as moléculas de RNA já vêm sendo utilizadas como ferramentas de biologia molecular há décadas e todo o conhecimento obtido ao passar dos anos tem nos mostrado que esta ferramenta é segura e é possível, sim, utilizá-la também no desenvolvimento de vacinas sem nenhum medo de que isto venha nos afetar no futuro. Adicionamos, ainda, o fato de que não são necessários vírus para a produção destas vacinas, o que torna este processo bem mais seguro e rápido.

É também verdade que a utilização em massa desta tecnologia nunca foi feita, e que reações adversas raras podem aparecer, além das famigeradas dores no local da injeção, uma vez que esta injeção parece ser oleosa. Mas, até o momento, com os dados obtidos em todas as fases de pesquisa e desenvolvimento destas vacinas, não existe motivo para imaginar que não seria algo semelhante aos eventuais efeitos colaterais observados em vacinas utilizadas hoje em dia. Ou seja, podemos dizer que as vacinas de RNA têm se mostrado tão seguras quanto as vacinas mais populares que tomamos rotineiramente.

Fabio Rueda Faucz é pesquisador do Laboratório de Genética e Endocrinologia do Instituto Nacional de Saúde Infantil e Desenvolvimento Humano Eunice Kennedy Shriver, nos Estados Unidos, e professor licenciado do curso de Ciências Biológicas da Escola de Ciências da Vida da PUCPR.

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