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Javier Milei e Sergio Massa fazem último debate antes do segundo turno das eleições, marcado para domingo, 19.
Javier Milei e Sergio Massa fazem último debate antes do segundo turno das eleições, marcado para domingo, 19.| Foto: Juan Ignacio Roncoroni/EFE e Enrique García Medina/EFE

Quando a contagem dos votos do primeiro turno terminou nas eleições presidenciais argentinas, em 22 de outubro último, muitos ficaram surpresos. O entusiasmo com Javier Milei, economista autodeclarado libertário, como o nome que derrotaria o governista Sergio Massa (e talvez até levaria a eleição) no primeiro turno não era só coisa de bolha de redes sociais: apenas um instituto de pesquisas eleitorais, o Atlas Intel, cravava a vitória de Massa no mês passado contra uma dezena de outros institutos. O que explica a surpresa governista?

Independente de acertos ou erros dos institutos, e mesmo com uma polarização política que parece paralela a que vivemos no Brasil, algumas coisas fazem eleições presidenciais argentinas muito diferentes das brasileiras. Nossos vizinhos, por exemplo, depositaram suas cédulas de voto após sete dias “no escuro” – pesquisas eleitorais, por lei, não podiam mais ser divulgadas a partir de uma semana antes das eleições, e mesmo resultados de pesquisas de boca de urna só podiam começar a ser divulgados três horas depois de encerrado o período de votação. Parte da ideia por trás disso é que, não sendo o voto obrigatório, as campanhas e ideias promovidas pelos candidatos é que deveriam motivar a população a ir às urnas, não eventuais resultados amedrontadores (e potencialmente manipulados) de pesquisas.

A lista de absurdos eleitorais argentinos vai muito além de uma campanha eleitoral presidencial sendo conduzida dentro de espaços do governo.

Se há diferença legal para a não-interferência de institutos privados de pesquisa nos resultados da eleição, há uma diferença ainda mais crucial: as possibilidades de interferência eleitoral usando o poder (e os cofres) do setor público. Basicamente, do ponto de vista brasileiro, é quase tudo liberado na terra dos hermanos. Era curioso ver que, por exemplo, na reta final até o primeiro turno, o candidato Massa conduzia suas coletivas de imprensa eleitorais direto do Ministério da Economia, cercado por cartazes de sua campanha.

Aqui no Brasil, por outro lado, pré-candidatos comissionados ou concursados no serviço público, militares, e mesmo governadores e prefeitos que disputarão novos cargos têm de se afastar de seus cargos muitos meses antes da eleição. Vereadores que hospedaram equipes eleitorais ou mesmo materiais de candidatos das eleições de 2022 em seus gabinetes funcionais enfrentaram pedidos de cassação. Mais emblematicamente, o ex-presidente Bolsonaro, que disputava reeleição a cargo Executivo e, portanto, não precisava se desincompatibilizar, foi condenado pela segunda vez à inelegibilidade no último dia 31 de outubro por uso político das comemorações de 7 de setembro no ano passado.

As diferenças são gritantes e a lista de absurdos eleitorais argentinos vai muito além de uma campanha eleitoral presidencial sendo conduzida dentro de espaços do governo. Durante o período eleitoral, o Ministério dos Transportes argentino listava nas telas das estações de metrô quanto custa a tarifa da viagem subsidiada em 95%, a ser mantida por Massa, e quanto custariam a “tarifa de trens do Milei” e a “tarifa de trens da Bullrich”, candidatos oposicionistas que supostamente acabariam com o subsídio.

Em uma medida de propaganda populista ainda mais cara aos cofres públicos - cerca de 5,7 bilhões de dólares ainda este ano – o governo argentino, apoiado pelo Congresso no mês de reta final eleitoral, simplesmente eliminou o imposto de renda para a maioria dos trabalhadores. Como populismo de esquerda é também uma especialidade do atual governo brasileiro, nós não ficamos de fora da brincadeira: o governo argentino pediu e o governo Lula atuou para que fosse liberado empréstimo de 1 bilhão de dólares do Banco de Desenvolvimento da América Latina para reabastecer os cofres esvaziados de Buenos Aires. Ajudar os amigos peronistas e barrar a ascensão de Milei foi prioridade.

O Leviatã estatal do país vizinho de fato entra em jogo para resolver as eleições, e só isso (somado ao jeito tresloucado de Milei, que se escancara na campanha e nos debates) poderia explicar a reviravolta do primeiro turno. Massa representa o peronismo que dominou a Argentina nos últimos 70 anos e que fez de um país rico um país quebrado onde muitos dependem do governo. Milei, meio maluco, representa a antítese dessa proposta utópica de que, como colocariam os economistas austríacos que Milei idolatra, “todos podem viver à custa dos demais”.

Massa tomou posse como ministro da economia quando a inflação anual estava em absurdos 79%, e um ano depois a inflação atingia ainda mais insanos 138% ao ano. O cidadão argentino sente esse empobrecimento (a pobreza no país já chega a mais de 40%) e vê a comida ralear sobre sua mesa: pesquisas realizadas nos últimos meses apontam que a grande maioria dos argentinos diz que a inflação é sua maior preocupação. A solução dos peronistas para essa preocupação não passa nem perto de dar autonomia ao Banco Central – estatólatras como eles querem um Estado inchado e centralizado sob seu controle. As soluções, na verdade, são as mesmas que eles vêm dando a todo e qualquer problema: imprimir mais dinheiro, emprestar mais dinheiro, e incorrer em déficits que retroalimentam o problema inflacionário. É um bônus, é claro, que imprimir dinheiro ajude a bancar a propaganda intensa que foi necessária para desvincular o candidato ministro da economia do desastre econômico em que o próprio governo colocou o país.

No segundo turno do próximo domingo, 19 de novembro, o trabalho de Milei é hercúleo. No primeiro turno, Massa fez 36% dos votos, Milei somou 30% e em terceiro lugar veio Patricia Bullrich com 24%. Os outros 10% dos votos válidos foram somados por outro peronista e um marxista trotskista. Massa largou na nova corrida, então, virtualmente com 46% dos votos. Patricia Bullrich e seu grupo, ligado ao ex-presidente Mauricio Macri, não hesitaram em declarar apoio à Milei, mas para Massa manter a liderança bastaria que alguns eleitores dela caíssem nas ilusões da propaganda governista ou, de maneira mais realista, se sentissem desgostosos e escolhessem não aparecer para votar.

Numa nota mais positiva para quem torce para que nossos vizinhos se vejam livres do peronismo, o mesmo Atlas Intel que foi o único instituto bem-sucedido no primeiro turno dessas eleições presidenciais argentinas agora indica uma vitória de Milei por cerca de 4% dos votos – 52% a 48%. Parece que, apesar de tudo, é possível para o libertário topetudo vencer o Leviatã argentino. Aguardemos no escuro, sem pesquisas, para ver se o Sol de Maio da bandeira argentina de fato iluminará a escolha do eleitorado nesse segundo round.

Henrique Mecabô é economista e cientista político pela Universidade McGill e mestre em economia pela Universidade de Toronto (Canadá); João André Sarolli é mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Chicago (EUA).

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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