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Ele é onipresente na descrição de porres homéricos, dos banquetes greco-romanos às Sagradas Escrituras – nas quais, na versão de um amigo meu, o vinho é mencionado 122 vezes. No Cântico dos Cânticos, alia-se à lascívia: "Teu umbigo, essa taça redonda onde o vinho nunca falta." O folclore popular é pródigo em frases de muito bom humor: "se beber vinho fosse pecado, Jesus teria transformado água em Fanta Uva".

Em seu livro Bebo, Logo Existo, o filósofo inglês Roger Scruton rende-se à generosidade do fermentado de uvas, "um convite ao diálogo e ao perdão que há no fundo de cada taça". Seguramente, a companhia tem forte influência nos seus encantamentos. Receber os amigos – ou a quem se ama – em torno de um bom vinho é um rito de celebração da vida. Até o circunspecto Benjamin Franklin se enche de júbilo: "o vinho é a prova constante de que Deus nos ama e deseja ver-nos felizes".

Discorrer sobre vinhos em ambientes sociais é uma postura amistosa, glamourosa e em certa medida demonstra cultura. Porém, pode-se legar a imagem de esnobe, pernóstico. Ou, usando uma adjetivação mais recorrente: enochato no falar e inconveniente no beber. A linha divisória entre o consumo moderado e a dependência é muito tênue e sabemos que são deletérios os malefícios do exagero. Não há consenso em relação à quantidade. É plausível de uma a duas taças diárias, de 250 ml. Moderação é a palavra de ordem.

O tinto seco contém antioxidantes e resveratrol, que colaboram para reduzir os níveis de LDL (o mau colesterol), elevar o HDL (o bom colesterol), reduzindo os riscos de doenças cardiovasculares. Com os amigos, faço blague que esta é a descoberta do século. Renato Machado reitera o conselho de seu médico: "Fique perto dos vinhos que rejuvenescem e longe dos laticínios que envenenam."

A vida é muito curta para se tomar maus vinhos. Pela metade do preço em relação ao Brasil, na degustação de alguns emblemáticos tintos nas bodegas de Mendoza, encontrei a justificativa da expressão "néctar dos deuses" e das veneráveis efemérides dos povos greco-romanos a Dionísio e Baco. Veio-me a lembrança da bucólica infância, quando a iniciação se fazia com a "sangria" – assim denominada nas famílias de italianos do interior de Santa Catarina –, a mistura de vinho de colônia, água e açúcar. Em outra ocasião, em Santiago, na visita a uma bodega, a bela morena pergunta de onde somos. Eufórica, exclama: "Ah, são do Brasil!" Faz sentido, pois 20% da produção daquela vinícola é exportada para o Brasil. No fim do ritual da degustação, a morena – nativa e com lindos traços indígenas – didaticamente verbalizava da aplicação dos cinco sentidos para bem sorver cada talagada: olfato, paladar, visão, tato. Fez-se uma providencial pausa. "E o quinto sentido, a audição?", pergunta o paulistano ao meu lado. Todos nós – como que embevecidos e mesmerizados com a graça e leveza daquele cerimonial –, em uníssono, bailamos nossas taças no ar em direção à taça erguida pela graciosa chilena, que após alguns segundos de silêncio proclama o gran finale: "Y ahora, celebremos con un tintín a la salud y, a la vez, un exquisito encanto al oído."

Sim, dei-me conta de que o som daqueles sutis toques é um maravilhoso encanto aos ouvidos e sempre é prenúncio de enlevo. Mesmo quando a vida não apresenta motivos para brindar, vale a recomendação de Napoleão, em referência ao champanhe: "Nas vitórias é merecido, nas derrotas é necessário".

Jacir J. Venturi, professor, é enófilo e fazendeiro.

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