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| Foto: Lula Marques/Agência PT

O julgamento do habeas corpus preventivo de Luis Inácio Lula da Silva foi utilizado como plataforma política por aqueles contra e a favor do ex-presidente. Por outro lado, para o Processo Penal brasileiro estava em jogo uma outra questão que pouco ou nada tinha a ver com a figura do ex-presidente: a possibilidade de antecipação de pena a partir do momento em que há condenação pela segunda instância.

Lembro-me das primeiras aulas de Direito como estudante na faculdade, quando os professores pregavam a importância de se respeitar a Constituição, vez que ela estava no topo da pirâmide legislativa. Uma lição um tanto quanto simples mesmo para os leigos, já que praticamente todos possuem a percepção da necessidade de se respeitar a lei maior.

Outro ensinamento básico é que o Supremo Tribunal Federal possui a função de proteger a Constituição e fazer cumprir suas regras, independentemente do clamor público ou da vontade da maioria. Neste ponto a proteção da Constituição é (e deve ser) contramajoritária, isto é, serve para blindar as normas de eventuais demandas da maioria. E quais são os motivos disso? Primeiramente, porque a vontade da maioria nem sempre é razoável (ou mesmo racional), tendo mais aceitação ideias radicais e populistas; em segundo lugar, a maioria de hoje não necessariamente é a maioria de amanhã; e, terceiro, o pensamento da maioria é ditado pela imprensa e pelas redes sociais, onde a intolerância impera.

A vontade da maioria nem sempre é razoável (ou mesmo racional)

Sendo assim, independentemente da opinião pública, deve-se restringir a discussão para o real conteúdo da Constituição, ainda mais considerando que a interpretação deste caso será utilizada nos demais processos em trâmite no Brasil. O artigo 5.º, no qual estão previstas as garantias e os direitos individuais, em seu inciso LVII, tem o seguinte texto: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Há alguma outra interpretação possível fora aquela que está escrita? O texto é inequívoco: somente após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória que uma pessoa poderá ser considerada culpada. Se, no Brasil, o trânsito em julgado ocorre quando não há mais oportunidade de recorrer, qualquer cidadão, rico ou pobre, apenas será considerado culpado após não haver mais recursos possíveis. Simples, claro, sem demagogia.

Por sua vez, o Código de Processo Penal, em seu artigo 283 (plenamente em vigor e em consonância com a Constituição) determina que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. A redação desta lei tampouco deixa espaço para interpretações distorcidas, ao prever a imprescindibilidade da sentença condenatória transitada em julgado para que alguém seja preso.

Leia também: O alcance da presunção de inocência (artigo de Valéria Padovani, publicado em 5 de abril de 2018)

Opinião da Gazeta: O Supremo toma a decisão correta (5 de abril de 2018)

Mesmo com redações tão nítidas, vê-se um esforço por parte de alguns juristas, membros do Ministério Público, advogados, militares, políticos, jornalistas e julgadores em se empenhar na elaboração de justificativas para se permitir a antecipação da pena mesmo quando ainda resta possibilidade de o acusado recorrer: argumentos como “para que a Lava Jato não termine”, “para acabar com os ‘recursos infinitos’”, “para que as delações possam continuar a ocorrer”, “para a defesa da sociedade”, ou “para que a impunidade não prevaleça”.

É inegável que a morosidade judicial produz impunidade e que isso é um problema gravíssimo; contudo, não é a partir da transgressão de garantias constitucionais que isso será resolvido. As consequências em sepultar direitos fundamentais são devastadoras para a sociedade. Deve-se entender de uma vez por todas que os direitos previstos na Constituição não são do Lula, do João ou dos bandidos, mas que, sim, são direitos inclusive do Lula, do João, dos bandidos, das pessoas do bem, dos meus irmãos, dos meus amigos, dos meus filhos, dos meus pais, dos meus inimigos e meus próprios, se um dia eu estiver na condição de acusado.

Que se faça um plebiscito questionando a cada cidadão se aceita abrir mão de seus próprios direitos caso seja acusado um dia. Ou abrir mão dos direitos de seus familiares se um dia forem acusados. É fácil renunciar a um direito alheio; o problema é quando precisamos deste mesmo direito.

Em matéria de direitos fundamentais, o STF não pode servir para chancelar a aparente vontade comum

A corrupção e a impunidade contaminam a sociedade e o país de forma perversa. Os desviantes merecem ser punidos. E essa punição deve ser concretizada com respeito aos direitos e garantias fundamentais e às regras do jogo, não se utilizando do “jeitinho brasileiro” para chegar ao resultado que alguns grupos pretendem e negando a própria Constituição. Se o principal obstáculo são as regras que possibilitam recursos incontáveis, que se racionalize tais regras a partir do Poder Legislativo (que tem representatividade popular).

Em matéria de direitos fundamentais, o STF não pode servir para chancelar a aparente vontade comum. Ao se dobrar à vontade da maioria, abre-se um precedente perigoso e o próximo passo será a regra de prisão a partir da primeira instância (entendimento já adotado por alguns juízes); depois, a partir do recebimento da denúncia; e, posteriormente, a partir do inquérito policial ou da prisão em flagrante.

Enfim, tão logo a condenação se torne definitiva e não possa mais ser revista, mesmo o ex-presidente deve cumprir a pena e isso faz parte das regras do jogo. Mas, sem que a sociedade comece a compreender que qualquer lesão de direito fundamental é uma lesão contra nosso próprio direito fundamental, continuaremos a nos afundar em uma era de intolerância e totalitarismo.

Rodrigo Faucz Pereira e Silva é advogado criminal e professor de Processo Penal do curso de Direito da Universidade Positivo (UP).
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